A CIDADE E SEUS SOUVENIRES:
O RIO DE JANEIRO PARA O TURISTA TER

The city and its souvenirs:
Rio de Janeiro for tourists to have

Bianca Freire-Medeiros[1]
Celso Castro[2]

Resumo: A proposta deste artigo é examinar alguns aspectos da representação turística da cidade do Rio de Janeiro a partir de seus souvenires. Reflete sobre a imagem turística da cidade tal como aparece nas “lembranças da terra”, nos objetos considerados tipicamente de interesse para turistas, a partir de um duplo movimento: ao material coletado em quatro lojas localizadas na Zona Sul do Rio, contrapõem-se souvenires encontrados em outros contextos culturais. Procura uma chave de interpretação possível do lugar que os souvenires ocupam na trama maior de representações e produtos culturais que estabelecem o Rio de Janeiro como destino turístico.

Palavras-chave: Turismo. Souvenir. Rio de Janeiro.

 

Abstract: This article examines some aspects of the tourist representation of Rio de Janeiro having the souvenirs as support. It reflects upon the tourist image of the city as it appears in the objects considered to be typically for tourists by proposing a folded movement: to the material collected in four stores in Rio de Janeiro, it opposes souvenirs with different cultural backgrounds. It aims at interpreting the place occupied by souvenirs in the broader setting of representations and cultural products that establish Rio as a tourist destination.

Key-words: Tourism. Souvenir. Rio de Janeiro.


Apresentação

Souvenires são um componente essencial e um significante eloqüente da experiência de viagem no mundo contemporâneo. É praticamente impossível inventariar todos os objetos ― marcos da cidade em miniatura, chaveiros, pratos decorativos, bolsas, camisetas, esculturas, ímãs, canetas ― que enfeitam paredes, estantes e geladeiras nas mais remotas partes do globo ou circulam aderidos a corpos de diferentes gêneros, idades e etnias. Funcionam, a um só tempo, como testemunho da viagem empreendida, como recurso de memória e como suportes da dádiva quando passam das mãos do turista para as de seus familiares e amigos na volta ao lar. Sem falarmos em um “segmento especializado” de souvenires que preenchem o desejo de viajar de maneira politicamente correta, uma vez que são produzidos por “segmentos desfavorecidos” e comercializados através de ONGs positivamente acreditadas. Em última instância, garantem ao turista a experiência da caridade pela via da compra.

Souvenires são o que o viajante traz consigo ― representam materialmente o vínculo entre o lugar visitado e o lar para o qual se retorna. Como “objetos de transição”, os souvenires são “touchstones of meaning which can evoke powerful memories of experience and mediate our sense of place, enveloping the past with the present” (MORGAN; PRITCHARD, 2005, p. 31). Independente do valor monetário de que estejam investidos, inserem-se em contextos mais amplos referidos a políticas de produção, comercialização e circulação próprias do turismo. Para além de seu status de objeto tridimensional, diretamente utilitário ou não, souvenires funcionam como marca de uma certa experiência cultural plena de capital simbólico capaz de conferir status àquele que o possui. Passam por diferentes regimes de valor e seguem variadas trajetórias e, no processo, reforçam fronteiras entre “aqui” e “lá”, entre “visitantes” e “hospedeiros”, entre presente e passado – tempo em que a viagem de fato se deu, ou a temporalidade abstrata do Outro.

A proposta deste artigo é examinar alguns aspectos da representação turística da cidade do Rio de Janeiro a partir de seus souvenires. O que está sendo oferecido e consumido nestas lojas “para turistas”? Que Rio de Janeiro estes objetos, dispostos nos balcões e prateleiras, ofertam e representam? Como se dá, na produção destes souvenires, a dialética entre e massificação e singularização, entre o local e o global, tão própria da experiência turística contemporânea?

Devemos alertar, desde logo, que se trata de um exercício exploratório. O que propomos aqui é uma reflexão inicial sobre a imagem turística da cidade tal como aparece nas “lembranças da terra”, nos objetos considerados tipicamente de interesse para turistas, a partir de um duplo movimento: ao material coletado em quatro lojas localizadas na Zona Sul do Rio[3], contrapomos souvenires encontrados em outros contextos culturais[4], capturados em fotografia não com o objetivo de remetê-los à sua matriz produtora, mas tão-somente de problematizar o Rio de Janeiro disposto nas prateleiras. A relativização, portanto, opera-se aqui pela via da comparação, pelo alinhamento analítico de souvenires encontrados em diferentes localidades.

Em contraposição a elucubrações sobre “O Turista”, “A Experiência Turística” ou “O Olhar do Turista” que, com raras exceções, passam ao largo da enorme diferenciação interna a essas categorias, propomos um exercício de observação comparativa. Obviamente, a intenção não é dar conta do largo espectro de possibilidades semânticas que esses artefatos culturais acolhem em diferentes partes do mundo, mas provocar um estranhamento duplo – dos “nossos” souvenires e dos souvenires “deles”.

Não se trata de avaliar a qualidade estética dos souvenires ou de pontificar sobre sua natureza falsificada, inautêntica, kitsch ou massificada. Desde a publicação da coletânea Anthropology of Things, em 1986, já não é possível aos cientistas sociais tratar os objetos em termos apenas estéticos ou formais. À noção de que as “coisas” possuem um valor intrínseco que pode ser determinado “objetivamente”, Arjun Appadurai e outros contrapõem a idéia de que seu valor é sempre contingente e relativo, no tempo e no espaço. A ênfase desloca-se, então, para o estudo dos movimentos históricos dos objetos, para análise das contingências históricas, sociais e políticas que conformam suas biografias culturais:

Focusing on the things that are exchanged, rather than simply on the forms or functions of exchange, makes it possible to argue that what creates the link between exchange and value is politics, construed broadly. (…) [C]ommodities, like persons, have social lives. (APPADURAI, 1986, p. 3)

É neste sentido que procuramos aqui uma chave de interpretação possível do lugar que os souvenires ocupam na trama maior de representações e produtos culturais que estabelecem e o Rio de Janeiro como destino turístico.

Rio de Janeiro e seus souvenires

A “natureza turística” de um lugar é uma construção histórica e cultural. Esse processo envolve a criação de um sistema integrado de significados através dos quais a realidade turística é estabelecida, mantida e negociada, e tem como resultado narrativas a respeito da cidade como destinação turística. Estas narrativas, que se modificam com o tempo, em alguma medida antecipam o tipo de experiência que o turista deve ter e necessariamente envolve seleções: enquanto certos aspectos são iluminados, outros permanecem na sombra. Alguns elementos são de longa duração e perduram apesar das mudanças na cidade, no trade turístico e no perfil dos visitantes (CASTRO, 1999; 2002).

No caso das narrativas de viagem sobre o Rio de Janeiro, perdura o recurso metonímico que possibilita à cidade encompassar a nação (FREIRE-MEDEIROS, 2002). A “capital turística do Brasil” sintetiza o caráter nacional, é vista como espécie de vitrine do país. As lojas de souvenires cariocas parecem reforçar essa lógica, tomando para si a tarefa de condensar o Brasil e disponibilizá-lo como mercadoria para seus visitantes. Nem mesmo nas lojas visitadas em Atenas, Budapeste e Praga – efetivamente capitais nacionais – é possível observar tamanha variedade de produtos de diferentes regiões.

As lojas cariocas oferecem souvenires de todas as regiões brasileiras (Figura 1) ― chimarrão, artesanatos do sertão mineiro, carrancas, carros-de-boi em miniatura, bijuterias do Pará ―, sem lhes identificar a procedência. Distanciamentos geográficos, econômicos e culturais são abolidos numa disposição que, em certa medida, lembra aquela dos “Wonder Cabinet” ou “Cabinet of Curiosities” dos séculos XVI e XVII. Percussores dos museus, os “Wonder Cabinets” ignoravam princípios classificatórios rigorosos ― cronológicos, geográficos ou tipológicos ― e dispunham objetos que partilhavam apenas a qualidade de serem “exóticos” segundo o referente europeu.



Figura 1 – Vista panorâmica de loja de souvenires – Rio de Janeiro (RJ)

Foto: Palloma Menezes.

O exotismo possui uma longa tradição na cultura européia ocidental, articulada em torno de três aspectos básicos: alteridade, distância e desconhecimento (TODOROV, 1984). O exótico substitui o maravilhoso dos séculos XV e XVI. Ambos, no entanto, pressupõem a exclusão daquilo que é familiar e conhecido. O exótico é, assim, um espaço da diferença, da radical alteridade ― uma experiência de encontro em que o sujeito reconhece a existência do Outro sem com ele se confundir. O gozo do exótico, argumenta Todorov (1984), reside justamente nessa possibilidade de o sujeito afirmar a diferença entre si e aquele que é objeto de sua percepção.

Nas narrativas sobre o Rio de Janeiro autoradas por estrangeiros, o exotismo referido à singular relação entre natureza e cultura é um elemento presente desde longa data (SOUZA, 1994; AMÂNCIO, 2000; FREIRE-MEDEIROS, 2005). “Existe algo no ar do Rio” que “é capaz de mudar qualquer pessoa”, suspirava Nora, personagem interpretada por Lana Turner no musical Meu Amor Brasileiro (Latin Lovers, EUA, 1953). Seduzida pela cidade que lhe parecia o reflexo invertido de sua Nova Iorque fria e racional, a milionária americana chega a sugerir que a atmosfera romântica do Rio seja engarrafada para exportação, algo como um souvenir capaz de inspirar paixões arrebatadoras mundo afora. Assim como em tantas outras narrativas sobre o Rio de Janeiro, revisita-se uma geografia da imaginação que condensa natureza e cultura, “primitividade” e vida urbana:

A imagem matriz, a partir da qual uma série de outras são derivadas, situa a cidade do Rio de Janeiro no limiar entre civilização e natureza, estabelecendo um sentido de equilíbrio entre estes dois lados polarizados: o da civilização como cultura e o da natureza como paisagem ‘cuja estranheza é exterioridade’ (SOUZA, 1994, p.115).

A demanda pelo exótico encontra, nas lojas de souvenires, em diferentes partes do mundo, possibilidade de plena realização. Nesse espaço heterotópico, para usar a expressão de Foucault[5], elementos culturais e eventos históricos são recombinados em arranjos improváveis e transformados em mercadorias turísticas. Em Budapeste e Praga, signos e personagens de um “exótico passado socialista” são reinscritos em meias, camisetas, bonés e matryoshkas (figuras 2 e 3).



Figura 2 – Meias

Foto: Bianca Freire-Medeiros.



Figura 3 – Matryoshkas

Foto: Bianca Freire-Medeiros

E os souvenires das lojas cariocas, como respondem à procura pelo exótico? Em larga medida, pela exaltação da “natureza”, de uma temporalidade mítica que se impõe ao tempo secular. Não encontramos objetos que remetam a situações de conflito e disputa ou mesmo que celebrem personalidades do mundo das artes ou da política. Se episódios e personagens históricos não se transformam em artefatos culturais para exportação, ícones da paisagem – “monumentos pré-existentes”, como define Chiavari (2000, p. 67) – e coletivos anônimos – “o sertanejo”, “a mulata” – os substituem com freqüência. Em alguns souvenires, o estranhamento da cidade e seus habitantes é radicalizado a ponto de abarcar referentes de um outro continente: em plena Zona Sul carioca é possível adquirir a máscara de um leão, com sua imponência dourada e longuíssima juba de corda, e uma variada estirpe de “nativos da África” (figuras 4 e 5).



Figura 4 – Leão

Foto: Palloma Menezes



Figura 5 – Africaninhos

Foto: Palloma Menezes

O exotismo calcado na natureza facilmente se aproxima do erotismo, outro elemento presente no conjunto de souvenires sobre o Rio. As curvas do Pão-de-Açúcar, traço econômico que imediatamente evoca a cidade, aparecem ao lado de exemplos mais explícitos como as bonecas de mulatas sensualmente curvilíneas e os cartões postais com abundantes mulheres de biquíni nas praias cariocas ― uma representação da cidade o poder público estadual pretende impedir.

A lei estadual nº 4.642, de 17/11/2005, proíbe “a veiculação, exposição e venda de postais turísticos, que usem fotos de mulheres, em trajes sumários, que não mantenham relação ou não estejam inseridas na imagem original dos cartões-postais de pontos turísticos, no âmbito do Estado do Rio de Janeiro”.  Segundo a autora do projeto de lei, deputada Alice Tamborindeguy (PSDB), o avanço do turismo no Rio de Janeiro:

[…] vem sendo prejudicado por uma insistente campanha de exposição da imagem feminina de forma apelativa, totalmente dissociada de qualquer campanha planejada [...]. Ao colocar nos cartões-postais dos pontos turísticos recortes de figuras femininas em trajes sumaríssimos, geralmente de costas, estas pessoas prestam um desserviço ao nosso País. Estes cartões que ficam em exposição em bancas de jornais, agências e boites, são veiculados em revistas e magazines no exterior e acabam por atrair para nossas cidades o tão deplorado turismo sexual. [...] Temos com certeza as mais belas paisagens do mundo e monumentos também não nos faltam. Por isso, é fundamental que digamos um sonoro não a este achincalhe de nosso país.[6]

Para o secretário estadual de turismo, Sérgio Ricardo de Almeida, o objetivo era proteger a imagem do Rio: “O uso de cartões postais com fotos explorando mulheres em trajes sumários sugere o turismo sexual, prática que em passado recente, que ainda se reflete no presente, nos estigmatiza com rótulos indignos.”[7] O então ministro do turismo, Walfrido dos Mares Guia, também elogiou a medida: “Temos tanta coisa boa para divulgar que não precisamos mostrar mulheres como objeto de consumo.”[8]

Esta associação entre a cidade e suas mulheres, objetificadas para consumo, não é, por certo, exclusiva aos postais cariocas. Os que encontramos nas lojas de souvenires em Atenas, por exemplo, também operam dentro dessa mesma lógica, sendo ainda mais explícitos na nudez revelada. Mas, se no caso destes cartões-postais, fica evidente que modelos profissionais foram intencionalmente fotografadas (figuras 6 e 7), os postais que capturam os corpos de mulheres nas praias cariocas buscam uma espontaneidade cuidadosamente construída (SIQUEIRA; SIQUEIRA, 2005). Sem rosto e sem a companhia de homens ou crianças, as mulheres parecem flagradas em seu suposto cotidiano tropical, evocando idealizações acerca do Rio de Janeiro as quais constituem, com incômoda freqüência, o imaginário estrangeiro:

 

[…] que situa a cidade como um “campo de diversões sexuais”; nele, as mulheres são por natureza “bonitas, exóticas” e sexualmente “ativíssimas” [...]. A possibilidade de engajarem relacionamentos sexuais e afetivos com as brasileiras, entendidos como altamente diferenciados daqueles disponíveis em seus países de origem, é uma das explicações preferenciais proferidas por gringos de todas as estirpes para explicarem sua presença no Rio de Janeiro (SILVA; BLANCHETTE, 2005).


 



 

Figura 6 - Postais cariocas

Foto: Palloma Menezes



Figura 7 - Postais Cariocas

Foto: Bianca Freire-Medeiros

Mas há dois elementos onipresentes nas lojas de souvenires que buscam estabelecer pontes simbólicas ente natureza e cultura: a estátua do cristo Redentor, no alto do Corcovado, e o Pão-de-Açúcar. Inaugurada em 1931, a estátua do Cristo Redentor é, por um lado, elemento de cultura (GRINBERG, 1999). Foi concebida como um símbolo eminentemente político-religioso: a tentativa de marcar a condição católica do país numa República que havia feito a separação entre Igreja e Estado. Essa dimensão religiosa, no entanto, desde o início divide espaço com o caráter moderno da estátua. Um símbolo clássico da arte sacra ― os braços abertos em cruz ― compatibilizou-se com o estilo moderno do art-déco. A originalidade dessa representação estava, em primeiro lugar, na raridade de ver-se o Cristo de braços abertos sobre a Baía de Guanabara sem estar crucificado, sofrendo ― ao contrário, está glorioso, abençoando a todos. Além disso, havia a novidade dos materiais utilizados ― o concreto armado e a pedra-sabão, presente no mosaico que reveste toda a estátua e que lhe dá grande luminosidade. Aliás, a modernidade da iluminação noturna da estátua é marca presente desde sua inauguração, prevista para ser acionada desde um sinal elétrico emitido da cidade de Nápoles pelo cientista italiano Guglielmo Marconi, inventor do rádio.

Por outro lado, a estátua do Cristo Redentor está ancorada na natureza, que lhe dá base de sustentação, e não no centro de uma praça urbana ou no interior de uma igreja. No alto de uma montanha, cercada pela Floresta da Tijuca e, vista por trás, emoldurada pelo azul do mar, a imagem transforma-se em parte permanente da paisagem carioca.

Da mesma forma, a representação do Pão de Açúcar e do Morro da Urca ligados desde 1913 por um caminho aéreo ― o “bondinho” ― une no mesmo símbolo natureza e cultura (SILVA, 1999). Terceiro teleférico do seu porte a ser construído no mundo, o bondinho era visto, desde sua inauguração, como um símbolo de modernização, como um grande melhoramento para a cidade, como sinal de progresso ― bem inserido, portanto, no projeto modernizador republicano, cujo ponto alto foi a reforma empreendida pelo prefeito Pereira Passos. Simbiose de pedra e obra de engenharia, natureza e cultura, passado e futuro passam a estar de forma indissolúvel e permanente associados num duplo monumento. Do alto do Morro da Urca e Pão de Açúcar, porém, descortina-se ao turista uma vista da cidade que se torna, em si, um terceiro ― e, talvez, mais maravilhoso ― monumento. (Figura 8)



Figura 8 - Xícara “Pão de Açúcar”

Foto: Palloma Menezes

Para concluir

De maneira geral, há um repertório de imagens convencionais referidas a estereótipos e clichês culturais da cidade ― suas paisagens e seus habitantes ― que informam quais artefatos serão produzidos para exportação. Quer estejamos em Budapeste, Praga, Atenas ou Rio de Janeiro, percebemos que os objetos, não por acaso, se repetem com pouquíssimas variações nas diferentes lojas. São objetos que os turistas não podem deixar de comprar, por mais “óbvios”, “anacrônicos” ou “deslocados” que sejam. No caso do Rio de Janeiro, entre os primeiros estão o Cristo Redentor, braços sempre abertos em tamanhos variados, e o Pão de Açúcar recriado em diferentes superfícies. Entre os “anacrônicos” ou “deslocados”, as borboletas azuis inertes nos pratos decorativos[9], a baianinha colorida a la Carmen Miranda e as piranhas boquiabertas, elementos resultantes de uma geografia redutora, capaz de condensar em um só território Rio, Bahia e Amazônia.

Não foi nossa intenção avaliar as razões expressas pelos consumidores ou a utilização dada a estes objetos na volta para casa. Reconhecemos que um dos grandes déficits da literatura sobre turismo é, justamente, o pequeno número de pesquisas de campo e entrevistas com turistas. Seria interessante verificar, por exemplo, que efeito ritual possui, para os indivíduos, a compra dos coloridos pássaros de pedra ou do pequeno chaveiro do Cristo Redentor.[10] Em que locais estes objetos são dispostos ou guardados, quando se volta para casa, e que atenção e cuidados lhes são dados? Que relações são estabelecidas entre estes souvenires, na maioria das vezes tridimensionais, e a bidimensionalidade dos textos ou imagens de cartões postais, mapas, tickets ou folhetos turísticos? Acima de tudo, que narrativas são produzidas para os conhecidos, quando se volta para casa, tendo os souvenires como estímulo ou suporte? Como chamou a atenção Susan Stewart (1993, p.135):

Through narrative the souvenir substitutes a context of perpetual consumption for its context of origin. It represents not the lived experience of its maker but the ‘secondhand’ experience of its possessor/owner.

Mesmo podendo aqui apenas lançar essas perguntas, os souvenires disponíveis nas lojas visitadas, independente da imagem da cidade que evoquem, nos ajudam a problematizar a noção de autenticidade: muitos são intencionalmente “fake”. Um prato de porcelana convenientemente “vira” a estátua do Cristo Redentor, de forma a que ela apareça de frente, tendo o Pão-de-Acúcar ao fundo ― mantendo inteiramente visíveis os dois símbolos maiores da cidade (Figura 9).

Os souvenires do Rio vendidos nessas lojas são, na maioria das vezes, “falsos cariocas”, originários de Minas Gerais e de outras localidades mais longínquas. Mesmo quando são “de fato” produzidos por artesãos locais, podem estar referidos a “falsas” narrativas, falas míticas como as que elevam as “baianinhas” a símbolo da mulher carioca. Mas, paradoxalmente, oferecem àquele que os compra a marca da autoridade de “quem esteve lá”, de quem vivenciou uma experiência autêntica de encontro com a alteridade. O que muitos cariocas considerariam “lixo” ou, com condescendência, “de mau gosto”, é comprado com entusiasmo pelo turista que possivelmente irá exibi-lo como testemunho de sua viagem aos trópicos. Neste sentido, não nos deixam esquecer que as “hierarquias de autenticidades” dependem não apenas da complexidade e qualidade do trabalho empregado na execução do objeto, mas igualmente no quão remota é a cultura que o produziu.



Figura 9  - Prato “Corcovado”

Foto: Palloma Menezes

Referências

AMANCIO, Tunico. O Brasil dos gringos: imagens no cinema. Niterói: Intertexto, 2000.

APPADURAI, A. Commodities and the politics of value. In: APPADURAI, Arjun. (Org.), The Social Life of Things: Commodities in cultural perspective. Cambridge: Cambridge University, 1986.

CASTRO, Celso. Narrativas e imagens do turismo no Rio de Janeiro. In: VELHO, Gilberto. (Org.). Antropologia urbana. Cultura e sociedade no Brasil e em Portugal. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999, p. 80-87.

____.  La naturaleza turística de Río de Janeiro, Brasil. Estudios y Perspectivas en Turismo. Buenos Aires, v. 11, n. 1 e 2, 2002, p. 81-93.

CHIAVARI, Maria Pace. Os Ícones na paisagem do Rio de Janeiro: um reencontro com a própria identidade. In: MARTINS, Carlos. (Org.) A Paisagem Carioca. Rio de Janeiro, Museu de Arte Moderna, 2000.

DENIS, Rafael Cardoso. O Rio de Janeiro que se vê e que se tem: encontro da imagem com a matéria. In: MARTINS, Carlos. (Org.) A Paisagem Carioca. Rio de Janeiro, Museu de Arte Moderna, 2000.

FREIRE-MEDEIROS, Bianca. The travelling city. Representations of Rio de Janeiro in U.S. films, travel accounts and scholary writing. 2002a. New York: Binghamton University, State University of New York. Tese (Doutorado em Teoria e História da Arte e da Arquitetura).

____. O Rio de Janeiro que Hollywood inventou. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

FOUCAULT, Michel. Questions on Geography. In: GORDON, C. (Org.). Power/Knowledge: Selected Interviews and Other Writings 1972-1977. New York: Pantheon Books, 1980.

GRABURN, Nelson. Tourism: the sacred journey. In: SMITH, Valene. (Ed.), Hosts and guests. The anthropology of tourism. 2 ed. The University of Pennsylvania Press, p. 22-36, , 1989,

GRINBERG, Lúcia. República católica – Cristo Redentor. In: KNAUSS, Paulo. (Org.).  Cidade vaidosa – Imagens urbanas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:, Sette Letras, p. 57-72, 1999.

MORGAN, Nigel; PRITCHARD, Annette. On Souvenires and Metonymy: Narratives of memory, metaphor and materiality. Tourist Studies, v. 5, n. 1, 2005, p. 29-53.

SILVA, Ana Paula da.; BLANCHETTE, Thaddeus. “Nossa Senhora da Help”: Sexo, turismo e deslocamento transnacional em Copacabana. Cadernos Pagu, n. 25 Campinas jul./dez. 2005.

SILVA, Renata Augusta dos Santos. O gigante e a máquina – Pão de Açúcar. In: KNAUSS, Paulo. (Org.). Cidade vaidosa – Imagens urbanas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Sette Letras, p. 45-56, 1999.

SIQUEIRA, Euler; SIQUEIRA, Denise. Corpo, mito e imaginários nos postais das praias cariocas. In: V Encontro de Pesquisa da Intercom. Rio de Janeiro: UERJ, 2005.

SOUZA, Anlene Gomes de. O estrangeiro e a cidade. O Rio de Janeiro e o imaginário da viagem da primeira metade do século XX. 1994. Dissertação (Mestrado em História Social da Cultura). Rio de Janeiro: PUC-RJ, 1994.

STEWART, Susan. On longing. Narratives of the miniature, the gigantic, the souvenir, the collection. Durham and London: Duke University, 1993.

TODOROV, Tzvetan. The conquest of America: the question of the other. New York: Harper & Row, 1984.



[1] Mestre em Sociologia (Iuperj) e Doutora em Teoria e História da Arte e da Arquitetura (Binghamton University – SUNY). Pesquisadora do CPDOC da Fundação Getúlio Vargas. E-mail: freiremedeiros@fgv.br

[2] Doutor em Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ e pesquisador do CPDOC da Fundação Getulio Vargas. E-mail: Celso.castro@fgv.br

[3] Agradecemos às assistentes de pesquisa Maria Eichler (bolsista de Iniciação Cientifica do CNPq), Palloma Menezes e Roberta Mathias pelo empenho na coleta de parte do material que inspira este artigo.

[4] Análise feita a partir de visitas de Freire-Medeiros a lojas de souvenir nas proximidades da Acrópole, em Atenas, ao longo da Váci útca, em Budapeste e nas proximidades da ponte do Rei Carlos, em Praga, durante o mês de julho de 2006. 

[5] Em conferência proferida no Circle d'Études Architecturales, em 14 de Março de 1967, Foucault introduziu a noção de “heterotopia” para falar de “lugares-outros” em que se justapõem lógicas que, a princípio, são radicalmente incompatíveis entre si.

[6]Disponível em <http://alerjln1.alerj.rj.gov.br/scpro0307.nsf/812136688f58007e

83256efb0067619d/f3561fb3239073f78325707b005a8819?OpenDocument>. Acessado em 30/7/2006. Também é da mesma parlamentar a autoria do projeto que resultou na como lei no 4.779/06, de 26/6/2006, que determina, para os infratores, multas em valores que variam entre 500 e mil Ufirs.

[7] Disponível em <http://www.sindegtur.org.br/2006/lernoticia.asp?id=201>. Acessado em 30/7/2006.

[8]Disponível em <http://institucional.turismo.gov.br/mintur/parser/imprensa/noticias/

item.cfm?id=2F10C323-D7B6-811F-895772B583AAB20B>. Acessado em 30/7/2006.

[9] Vale lembrar que a utilização das borboletas azuis, bem como de elementos da fauna marinha, na confecção de artefatos industriais e/ou artesanais constitui crime ambiental.

 

[10] Nelson Graburn (1989) analisa as viagens de turismo como rituais que marcam passagens entre dois estados de diferentes qualidades morais: o estado de trabalho ordinário/ compulsório gasto “em casa” e o estado sagrado não-ordinário/ voluntário “longe de casa”. Seu ponto fundamental é que as viagens funcionam como marcos simbólicos para a construção da biografia dos turistas.