“Navegando à deriva”:
Notas etnográficas sobre o turismo em Ilhéus, Bahia
“Drift sailing”:
Ethnographic notes
about tourism in Ilhéus,
Roque Pinto[1]
RESUMO: Este texto se propõe a discutir
alguns aspectos relacionados à atividade turística na cidade de Ilhéus,
localizada no litoral sul da Bahia, centrando-se especialmente nas relações que
os empresários ligados à atividade turística estabelecem com o lugar e de que
modo tais relações influenciam o próprio sistema turístico local. As investigações
foram norteadas por uma metodologia qualitativa, baseada na coleta de dados com
vistas à descrição etnográfica. Utilizou-se
como técnicas de investigação a observação participante, a aplicação de
entrevistas semi-estruturadas e não-estruturadas junto a usuários e gestores
públicos e privados e a aplicação de questionários em estabelecimentos de
alojamento. De acordo com os resultados da investigação, o gap entre os recursos disponíveis e os atrativos efetivamente
formatados para o turismo na cidade, bem como a incipiência das ações públicas
e as deficiências do setor privado no turismo local representam apenas sintomas
– e não causas – de um problema cujo fulcro se encontra na invisibilidade do
turismo enquanto atividade produtiva e vetor de desenvolvimento sócio-econômico
desde o ponto de vista do poder público.
Palavras-chave: Turismo. Ilhéus. Bahia. Desenvolvimento.
Abstract: This paper attempts to
discuss some issues on tourism in Ilhéus City, located in south Bahia State,
Brazil, focusing mainly on relations between local entrepreneurs and the place
and trying to analyze in which ways those relations influence the local
touristic system itself. It stems from a qualitative research based on data
from ethnographic descriptions. Research techniques such as participant
observation, semi-structured survey and non-structured survey were used, and
the subjects were consumers as well as public and private managers. Surveys in
lodging facilities were also performed. As an outcome, it can be said that the
gap between available resources and attractions effectively created for
tourism, as well as the lack of action from both public and private sectors on
local tourism, represent only the symptoms – and not the causes – of a problem
which is centered in the invisibility -for public adminstration-, of tourism as
a way for social and economic development.
Key words: Tourism. Ilhéus.
Desde que se viram sem
mastro, sem leme e sem velas, ficou-lhe a nau lançada no bordo da terra. (Relação
da Mui Notável Perda do Galeão Grande S. João. Moçambique, 1553).
Introdução
Este trabalho pretende
discutir sobre o imbricamento entre a política local e o desenvolvimento do
sistema turístico na cidade de Ilhéus, no litoral sul da Bahia, enfatizando as relações
que os gestores públicos e privados estabelecem com o lugar, e de que modo
essas mesmas relações influenciam o próprio sistema turístico.
Propõe-se uma abordagem
qualitativa, baseada na descrição etnográfica e fundada na observação
participante. Os dados empíricos aqui referidos aludem às atividades de campo realizadas nos períodos de julho de
As aportações que se seguem
referem-se aos trabalhos de investigação tutorados e dirigidos pelo professor
doutor Agustín Santana Talavera e norteados pelo projeto de tese doutoral intitulado Padrones
Actitudinales de Gestores en el Turismo en Ilhéus, Brasil, inscrito na linha de investigação Territorio, Pesca, Turismo y Gestión de Recursos no Departamento
de Prehistoria, Antropología e Historia Antigua da Universidad de La
Laguna, Tenerife, Espanha.
Desenho da investigação
Dentro do subsistema estático[2]
observado privilegiou-se o ponto de vista dos gestores públicos e privados,
embora também fossem realizadas entrevistas com usuários de equipamentos
turísticos e moradores da cidade de Ilhéus e de outras próximas (sendo que
esses dois últimos grupos se sobrepõem no contexto empírico, como se verá).
O problema
central a que se refere essa investigação é balizado pela idéia de que a
percepção da área turística pelos empresários e gestores públicos varia numa
escala que vai de disposições econômico-racionais a disposições
subjetivas-emocionais, que corresponderiam, respectivamente, à apreensão da
área como recurso ou como lugar (quadro 1):
Disposições
Disposições
econômico-racionais subjetivas-emocionais
Recurso
Lugar
(território para exploração) (território para viver)
Quadro 1 - Escala de percepção
de gestores e investidores no sistema turístico
Fonte: Elaboração própria
Essa escala
pode ser averiguada através das atitudes e tomadas de decisões desses gestores,
especialmente em relação ao nível de participação e interferência destes no
aparato político que envolve o sistema turístico como um todo.
Sem embargo, no plano empírico investigado se
verifica uma defasagem entre os recursos naturais, culturais e logísticos que
dispõe a cidade e os atrativos efetivamente formatados para o turismo. E esse
descompasso pode ser creditado em parte à própria percepção dos executivos
locais sobre o território, em função das disposições cognitivas, afetivas e
conativas que compõem sua visão do lugar.
É
importante ressaltar que tanto a Secretaria de Turismo de Ilhéus quanto a
Bahiatursa (órgão oficial de fomento ao turismo do Estado) e a Secretaria de
Turismo do Estado da Bahia não dispõem de estatísticas atualizadas sobre o
turismo na região e particularmente sobre a cidade, de forma que o aporte
quantitativo relativo ao campo investigado viu-se claramente prejudicado, ao
que se procurou compensar com entrevistas em profundidade aplicadas a gestores
ligados ao setor turístico da cidade, numa proporção que pode ser estimada
entre 25% e 30% do universo dos estabelecimentos turísticos existentes – uma
vez que não se tem dados precisos sobre a quantidade destes[3].
Ademais,
procurou-se categorizar tais estabelecimentos de forma que a eleição dos
entrevistados obedecesse a critérios de proporcionalidade no sentido de
apresentar com o maior rigor possível a correlação entre o peso político e a
significância local de cada categoria de estabelecimento com a quantidade de
entrevistas colhidas por categoria. Do mesmo modo, os informantes que figuram
na investigação foram selecionados segundo sondagens prévias em que apresentaram
uma massa significativa de dados no âmbito dos objetivos propostos no trabalho[4].
Assim,
a metodologia aplicada no trabalho de campo foi eminentemente qualitativa,
baseada na coleta de dados com vistas à descrição etnográfica (CAMPBELL; LEVINE, 1973; MEAD, 1973; GARCÍA JORBA, 2000). Utilizou-se como
técnicas de investigação a observação
participante (ANGUERA ARGILAGA, 1995), conjuntamente com a aplicação entrevistas semi-estruturadas e
não-estruturadas junto a usuários e gestores públicos e privados ligados ao
setor turístico local e aplicação de questionários (CAUHÉ AGUIRRE, 1995; DUVERGER, 1996; VALLES, 1997; GARCÍA GARCÍA, 2000)
junto a estabelecimentos de
alojamento.
Antecedentes: ascensão e queda dos “frutos
de ouro”
A cidade de
Ilhéus se localiza numa baía circundada por
morros, situada à latitude S14° 47' 20" e longitude W 39° 2' 58",
a cerca de
Fundada como vila
da Capitania de São Jorge dos Ilhéus em 1535, Ilhéus foi oficialmente
convertida à categoria de cidade em
Os “frutos de
ouro” foram o principal produto da pauta de exportação do Estado da Bahia entre
as décadas de 1900 e 1970 (GUERREIRO DE FREITAS; PARAÍSO, 2001). A produção
cacaueira no sul da Bahia atingiu seu apogeu na primeira metade do século XX,
quando a região isoladamente logrou ocupar o posto de segundo maior produtor e
exportador de cacau do mundo.
Símbolos dessa riqueza poderiam ser
vistos na iluminação pública da cidade, cujos postes foram importados da
Inglaterra, como as pedras que pavimentam algumas de suas ruas centrais (nas
primeiras décadas do século XX Ilhéus abrigava um vice-consulado britânico).
Mas o consumo perdulário e a ostentação
poderiam ser percebidos com maior intensidade nas atitudes das famílias tradicionais,
com a exibição de pianos de cauda inclusive nas sedes de fazenda ou compra de
apartamentos de “veraneio” em Paris ou mesmo em Tóquio, como relataram alguns
informantes. Ou, concretamente, quando em 1918 o coronel[5]
Ramiro Ildefonso de Araújo Castro construíra uma residência em Ilhéus idêntica em
todos os detelhes ao Palácio do Catete, sede do governo federal à época (HEINE,
2004, 41; PINTO, 2005).
Nesse sentido é emblemático o depoimento de um
informante que chegou a Ilhéus no final da década de 1970, isto é, já no
lusco-fusco do “ciclo de ouro” do cacau, mas ainda assim em busca de uma riqueza
que circulava desproporcionalmente em relação ao restante do país:
Quando eu cheguei aqui [em 1977] era uma época pujante e a idéia era
se fixar por causa da riqueza, da ostentação econômica que havia na época.
Ilhéus tinha, junto com Itabuna, proporcionalmente mais veículos novos do que
em São Paulo. Nós éramos uma cidade rica[6],
a grande maioria dos fazendeiros tinha apartamento na Europa, passeava uma ou
duas vezes pela Europa [...]. Eu vim do Rio de Janeiro, onde o máximo que um
sujeito de classe média conseguia [lograr] era chegar numa faculdade com um pai
que tinha uma casinha, um carrinho de classe média. Classe média em Ilhéus era
quem colhia três mil e quinhentas arrobas de cacau, quer dizer, o 'cara' podia
comprar oitenta pick-ups por ano (L., Hoteleiro).
Com efeito, a pujança econômica, o alto
nível de renda de parte da população e o distanciamento político e cultural da
região cacaueira em relação a outras áreas do Estado – especialmente a capital
– chegaram a convergir num sentimento separatista[7],
uma vez que repercurtia cada vez mais alto as vozes que então arrogava para a
porção sul da Bahia o epíteto de “civilização do cacau” (ADONIAS FILHO, 1976).
Pari pasu à expansão da área de cultivo do cacau deu-se a
interiorização das plantações e a conseqüente articulação de Ilhéus com outras
partes da região, especialmente com o município de Itabuna, pela via férrea.
Com a conexão entre a ferrovia em Itabuna
(inaugurada em 1913) e o porto em Ilhéus, o eixo Ilhéus-Itabuna se conformou
como o "bipólo líder do subsistema urbano mais bem estruturado do Estado
na primeira metade do século XX" (SEI, 2007), configurando-se assim como o
mais importante atrator econômico e demográfico da região, sendo Itabuna o
núcleo do comércio varejista e de serviços e Ilhéus o centro de
comercialização, exportação e industrialização do cacau.
Contudo, uma
crise que se arrastara lentamente sobre a lavoura cacaueira desde a década de
1960 foi açodada pela praga “vassoura-de-bruxa” a partir do início da década
1990[8].
Com alterações profundas na sua paisagem econômica, a região passa a sofrer
fortes pressões demográficas, com o êxodo massivo de famílias da zona rural em
direção principalmente às cidades de Ilhéus e Itabuna, que experimentam um
aumento populacional desordenado e o respectivo surgimento de vários bairros
precariamente urbanizados ou não-urbanizados, derivados de ocupações
espontâneas.
Com a redução do monocultivo do cacau a 30% da área
originalmente cultivada, e com a ausência de qualquer sinal de melhora a curto
prazo, começa-se a pensar alternativas econômicas ao “fruto de ouro”, dentre
elas o turismo (CERQUEIRA, 2002), sobretudo considerando (a) os recursos
naturais locais; (b) as extensas faixas litorâneas até então praticamente inexploradas;
(c) uma considerável rede de alojamentos sub-utilizada, montada para satisfazer
à demanda dos comerciantes de cacau; e (d) uma forte imagem midiática ligada às
obras do escritor Jorge Amado, autor do romance “Gabriela, Cravo e Canela”,
ambientado na cidade de Ilhéus e que, adaptado à televisão, logo tornou-se um
grande sucesso da teledramaturgia brasileira não só dentro do país como também no
exterior (CUNHA, 2003; 2004; PINTO, 2008).
Figura 1 - Visão
do mirante de Serra Grande, localizado entre Ilhéus e Itacaré.
Foto: Roque Pinto
Ilhéus, “a terra de Jorge Amado”
De fato, uma das peculiaridades do
turismo em Ilhéus é que a maioria dos usuários dos seus equipamentos turísticos
são habitantes da cidade contígua de Itabuna (
De acordo com Pesquisa de Demanda Turística de Ilhéus (2002), a maioria
dos visitantes ocupam alojamentos não-hoteleiros, já conhecem a cidade e, via
de regra, possuem amigos e/ou parentes na cidade. Há uma discrepância entre a incipiente
promoção turística e o quase inexistente planejamento da atividade por parte
dos poderes públicos, que avaliam o quadro de turistas como advindo de
metrópoles não-litorâneas de fora do Estado (Belo Horizonte, Brasília, Goiânia,
São Paulo), enquanto que os dados de campo apontam para uma massa de visitantes
eminentemente regionais.
Em termos
logísticos, a cidade possui acesso aéreo, terrestre e marítimo, respectivamente
através do aeroporto Jorge Amado, que mantém vôos diários para as cidades de
Salvador, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e São Paulo (INFRAERO, 2004); pelas
rodovias BR-101, BR-415 (federais) e BA-001 e BA-262 (estaduais); e pelo Porto
de Malhado, por onde recebe regularmente cruzeiros de várias partes do mundo[11].
A política e os gestores
Considerando o material analisado no
escopo da investigação, a imagem turística de Ilhéus é norteada pela percepção
da defasagem entre os recursos (naturais, simbólicos e
logísticos) e os atrativos da cidade e do seu entorno, sendo este o principal
fator limitante da estabilização e expansão da demanda turística:
Aqui
não tem nada. Aqui não tem [opções de lazer] para jovem, por exemplo... o quê
que um jovem da idade do meu filho, que tem quinze anos, tem pra fazer aqui em
Ilhéus? Nada. Não tem nada... a cidade está mal organizada, toda esburacada,
toda suja, a praia suja, ninguém cuida nem da praia que é a única atração que
tem aqui na cidade... Não tem o poder publico aqui da cidade. Não se faz
absolutamente nada pra melhorar isso, nada. (D, pousadeira).
Esse problema é um sintoma causado por
um conjunto de elementos estruturais, principalmente de natureza política, que
acabam por obstruir a implementação de melhorias no receptivo referentes à limpeza
urbana, à qualificação da mão-de-obra, ao planejamento da atividade e à
conservação do patrimônio.
Sem embargo, os principais problemas
apontados na pesquisa estão em consonância com os resultados apresentados por
alguns trabalhos desenvolvidos no âmbito do Mestrado em Cultura e Turismo da
Universidade Estadual de Santa Cruz, localizada nesta mesma cidade (CAIRO,
2003; MIRA, 2003; DORIA, 2004; MENEZES, 2004; OLIVEIRA, 2004; LEMOS, 2005;
SOUZA, 2005), e por outros autores que se dedicaram ao tema (MENEZES, 1998;
CERQUEIRA, 2002; MATA, 2004), mormente ligados a:
1 Má
conservação, precariedade e problemas de acesso a equipamentos turísticos,
nomeadamente estabelecimentos de alojamento, praças e pontos turísticos;
2 Ineficiência
dos serviços públicos básicos, principalmente limpeza urbana, segurança pública
e ordenamento e sinalização do trânsito;
3 Estrutura
deficiente de serviços ligados ao ócio e ao entretenimento;
4 Qualidade
irregular e custo elevado dos serviços oferecidos[12].
Contudo, o que os autores apontam como
sendo “o problema” do turismo em Ilhéus (mão-de-obra, hospitalidade, serviços
públicos, equipamentos turísticos), na verdade parece representar apenas “a
parte visível” de uma questão mais entranhada no tecido social local (PINTO,
2006; 2007).
De acordo com as evidências empíricas
arroladas, o fulcro do “problema Ilhéus” está na inconsistência do turismo como projeto político e sua invisibilidade
junto às administrações municipais como um agente econômico e um vetor de
desenvolvimento local:
Eu
acho que Ilhéus é uma cidade com potencial turístico, mas eu não acho uma
cidade turística porque não oferece tudo que o turista precisa. Se eu fosse dar
uma nota de zero a dez eu daria cinco, cinco porque nós temos alguns
equipamentos interessantes, a natureza generosa demais, uma história
riquíssima, tem personagens atrelados a nossa marca Ilhéus conhecido no mundo
inteiro... Tudo de negativo que poderíamos encontrar numa cidade estamos
encontrando aqui hoje na cidade, a cidade infeliz. A cidade está suja, a cidade
está mal iluminada, a cidade está com as vias ruins, a cidade está com seu
patrimônio histórico degradado, a cidade precisa ter sua história resgatada, a
educação não está a contento, a saúde deficiente, os equipamentos em sua
maioria sofrendo pra se manterem vivos, sem promoção do destino, sem promover o
turismo... eu não posso achar que isso é positivo, e não é graças a esse
governo [municipal], não. Isso vem acontecendo ano após ano, esse governo só
agravou. [A cidade] não tem poder político há muitos anos, eu acho que nunca teve.
Desde que eu moro aqui que eu nunca ouvi falar, somente alguns ensaios muito
superficiais, muito a curto prazo... e politiqueiros. (M., empresário da área
de marketing).
Com isso, verificam-se não só as
persistências desses problemas, como também a sua agudização ao longo do tempo,
como indicam as vozes do empresariado[13]:
O
principal problema da cidade é o descaso com que a cidade é tratada. Por
exemplo, aqui em Ilhéus eu trabalhei um fim de semana eu tive uma coleta de
lixo durante todo o fim de semana e hoje [quarta-feira] eu tive outra, quer
dizer, a gente está convivendo com um problema sério de lixo, é uma cidade
abandonada, esburacada, depauperada, isso jamais uma cidade turística poderia
ter, é [falta de] zelo, só isso. Eu classifico o turismo em Ilhéus como amador,
por isso que eu estou aqui, porque eu sou amador, quero me tornar um
profissional, uma coisa bem prática, me esforço, leio bastante sobre o assunto,
mas o turismo aqui é amador, muito amador. (R., cabaneiro).
Segundo os dados de campo,
parte dos proprietários locais encara o turismo como uma atividade provisória,
um modo alternativo e relativamente precário de fazer circular dinheiro
enquanto o cacau não volta a reunir condições – de crédito, de erradicação de
pragas, de preço no mercado internacional, de oferta de terras férteis – para
alcançar patamares de lucratividade semelhantes àqueles obtidos até mais ou
menos a década 1970. Contudo, essa mentalidade representa a fração menor do
empresariado, em geral formada por naturais da região.
Caso se definisse o
empresário de turismo em Ilhéus como um tipo-ideal, se teria que esse sujeito é
um forâneo residente na cidade há não mais do que 15 anos, nunca teve
experiências anteriores com o turismo, possui rendimentos regulares oriundos de
outras fontes (aposentadoria, bens de raiz
ou outros empreendimentos), e que elegeu a cidade para viver como uma
alternativa de “qualidade de vida”, um lugar onde se poderia concretizar “o
sonho de se aposentar e abrir uma pousada num paraíso em frente ao mar”.
Isso explicaria em parte a
inércia política da categoria. A partir desses dados se pode inferir que esse
segmento empresarial não atingiu uma “densidade moral” (à Durkheim) que se
refletisse num grau de associativismo capaz de alterar a balança de poder
local, uma vez que se nota uma flagrante incapacidade destes empresários de
fazer valer seus interesses no contexto das políticas públicas em Ilhéus.
Dizendo de outro modo, a ineficiência
associativa do setor obsta o exercício de pressões mais efetivas sobre a
municipalidade não só no sentido de implementar políticas voltadas estritamente
para o turismo, como também de prover melhorias gerais que repercutiriam
positivamente na atividade turística, direcionadas para o saneamento básico, a segurança
pública, o ordenamento do trânsito ou a urbanização e iluminação de vias
públicas.
De acordo com os dados empíricos
arrolados, pode-se construir um quadro analítico a respeito dos gestores
privados do turismo na cidade a partir das seguintes premissas:
I Um grande percentual dos empresários do setor
turístico de Ilhéus é composto por adventícios;
II Esses indivíduos não tinham uma intenção prévia
deliberada de instalar um empreendimento turístico na cidade;
III Não possuem formação técnica na área de turismo
e nunca haviam lidado com essa atividade antes;
IV O turismo "surge" como uma
"alternativa natural" dadas "as belezas naturais e o potencial
turístico da cidade";
V A principal motivação desses indivíduos para se
fixaram em Ilhéus é a "qualidade de vida", um ideal que contrastaria
com o modus vivendi das grandes cidades urbanas de onde advêm;
VI Ainda que estejam descontentes com os resultados
financeiros dos seus negócios seguem satisfeitos em viver na cidade, em que
pesem seus problemas estruturais e conjunturais;
VII Embora verbalizem a respeito do turismo como
uma atividade necessariamente interconectada com outros setores da sociedade,
na prática suas ações se limitam ao gerenciamento do próprio negócio;
VIII A capacidade de intervenção de entidades representativas
do setor turístico e dos conselhos deliberativos nas instâncias decisórias locais
é bastante limitada;
Levando em conta essas assertivas,
pode-se divisar um padrão de conduta dos empresários do setor turístico de
Ilhéus baseado em alguns elementos discretos:
a) Isolamento político (ao menos
enquanto "classe");
b) Ações empresariais e tomada de
decisões definidas ad-hoc, sem planejamento de longo prazo, e de
curtíssimo alcance – "eu estou fazendo a minha parte, da porta pra
dentro...";
c) Indissociablidade do negócio
com o ócio: as categorias "tempo", "espaço" e
"trabalho" funcionando de modo distinto ao que se atribuiria um sentido
estritamente capitalista;
d) Relação com o território
enquanto um lugar para viver e não
como um lugar para explorar:
"ganhar dinheiro" seria uma espécie de efeito colateral desejável mas
não imprescindível.
Desse modo, uma das
hipóteses de trabalho iniciais, de que um ethos derivado do monocultivo
do cacau seria central para compreender o mundo do turismo em Ilhéus, parece não se verificar totalmente. Por outro lado, pode-se
inferir que pelo menos colateralmente essa "mentalidade extrativista"
influi nas atitudes dos empresários e pode, sim, impingir nas suas decisões, no
sentido a) de uma visão imediatista e
atomicista e b) de uma idéia de ciclo
agrícola tipo "safra e temporão" transplantada para o turismo, isto
é, na alta estação é quando se “colhe” os dividendos do turismo, e na baixa
estação é o tempo de “arrumar a casa” para o verão.
Conclusão
Um dos aspectos mais relevantes para o entendimento das
particularidades do sistema turístico ilheense é a relação que os empresários
locais estabelecem com a cidade. É unânime a idéia – especialmente influenciada
pelas obras midiáticas de matriz jorgeamadiana – de viver "num lugar com
qualidade de vida", "longe do estresse da cidade grande" e que
"se possa desfrutar da natureza e dormir com a porta aberta" (embora
na prática já não se possa gozar de tamanha tranquilidade).
Essas
motivações, por seu turno, inscrevem-se no bojo da situação
econômico-financeira desses próprios empresários, na medida em que muitos deles
prescindem do negócio turístico para sobreviver, por disporem de rendas
alternativas.
Com
isso, verifica-se uma atitude que no limite poderia ser classificada, paradoxalmente,
como “anti-capitalista” no sentido de não procurar maximizar seus lucros nem se
preocupar em manter seus negócios no limite da sua capacidade de carga, o que aponta
para uma relação peculiar desses indivíduos com o lugar, sintetizada numa frase
recorrente nas entrevistas: "o negócio vai mal, mas não quero sair daqui
nunca”.
Assim,
tem-se que o evaziamento da ação coletiva dos gestores frente ao poder público
pode ser creditada, por um lado, à incapacidade de um associativismo eficiente
e eficaz – “essas reuniões são só pra perder tempo, nada se resolve” –, e por
outro lado, à eleição prioritária de resolver seus problemas de forma
individual, replicando o sistema clientelista de negociação, “falando com um e
com outro amigo [político]”.
Em relação aos
gestores públicos, tem-se que sua visão
do que seja “turismo” é de curto alcance e em geral se confunde com hotelaria.
Portanto, estes não percebem o turismo como uma
atividade produtiva strictu sensu e
tampouco enxergam seu alcance econômico (potencial e efetivo).
Além disso, o setor é encarado
como "pouco rentável" tanto em termos políticos (montante de votos)
como em termos tributários (montante de arrecadação): segundo alguns vereadores, o turismo geraria um
capital político escasso porque tanto a arrecadação direta de impostos (cerca
de 5% do total dos tributos municipais) quanto a população de eleitores
vinculada à atividade seriam pouco significativas no contexto de uma economia
das trocas políticas.
Por outro
lado, a visão dos políticos em relação ao turismo é obscurecida não apenas pela
incapacidade de fazer uma avaliação sistêmica da atividade, mas também pela falta
de dados objetivos sobre a quantidade e os tipos de estabelecimentos que a
cidade dispõe e pela falta de interlocução com os empresários ligados ao turismo.
A perspectiva do poder legislativo não difere muito
da ótica do executivo municipal sobre o tema. Reiteradas vezes os secretários
de turismo da cidade reclamavam da falta de recursos e de problemas de articulação
com outras secretarias municipais (de infra-estrutura, de planejamento, de obras)[14].
Inclusive fora sublinhado que o prefeito pensava a
questão turística como um "problema dos empresários", restrito ao
âmbito da hotelaria, e que "por Ilhéus ser Ilhéus os turistas vêm de
qualquer jeito". Desse modo, para o poder municipal a atividade turística
é encarada como um fenômeno espontâneo e marginal que agrega pouco valor
econômico para a cidade e pouco coeficiente político para si.
O reflexo dessa postura no plano espacial,
territorial, na arquitetura urbanística e sociológica da cidade e do seu
entorno é uma imagem de abandono: as maiores queixas dos turistas sobre a
cidade é o descaso com o patrimônio, a falta de limpeza, a falta de segurança e
a quase inexistência de opções de ócio, reflexo de uma defasagem entre as
demandas públicas – saneamento básico, educação básica, limpeza urbana,
iluminação, segurança – e as ações governamentais na cidade.
Com efeito, no período da coleta do material
etnográfico o então prefeito se situava muito aquém das expectativas dos seus
eleitores[15]
e, sobretudo, enfrentava vários escândalos de improbidade administrativa,
desvio de recursos, favorecimentos ilícitos, emprego de parentes na máquina
púbica e pagamento de suborno a vereadores[16].
Além disso, as atribuições próprias do poder
municipal parecem ser executadas de improviso, sem planejamento e sem solução
de continuidade, com falhas de comunicação e interação entre as secretarias
municipais. E, desse modo, a infra-estrutura básica para a implantação de um
sistema turístico integrado à localidade segue comprometida.
Sem embargo, os
círculos mais altos do setor público em Ilhéus encaram o turismo como uma
latência e um porvir e, especialmente, como um discurso politicamente conveniente,
inclusive porque ele é mais valioso como promessa de campanha política do que
como uma realidade efetiva.
Nesse sentido se
verifica, tanto nas instâncias públicas quanto privadas, uma grande lacuna
entre a retórica e as ações pragmáticas voltadas para o turismo, o que se
constitui como um dos principais fatores limitantes do desenvolvimento dessa
atividade em Ilhéus, panorama que pode ser resumido na fala de um empresário
local: “Estamos aí a navegar à deriva, onde a
maré nos levar estamos indo.
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Recebido
em: novembro de 2008
Aprovado
em: dezembro de 2008
[1] Professor de Antropologia na
Universidade Estadual de Santa Cruz (Ilhéus, Brasil) e doutorando em
Antropologia Social pela Universidad de
[2] Para uma discussão mais
aprofundada sobre o sistema turístico ver: Beni (1993); Mathieson e Wall (1990); Simonicca (2001); Santana
Talavera (1997; 2002); Burns (2002).
[3] Vale apontar que a própria
ausência de dados oficiais sobre o turismo na cidade já representa por si só um
importante dado etnográfico referente ao tratamento que o poder público
dispensa ao turismo local.
[4] Especialmente em função
dos resultados do projeto de pesquisa Turismo, Status e Consumo em Ilhéus, financiado pela Universidade Estadual de
Santa Cruz (Ilhéus, Brasil), e realizado no período de
[5] “Coronel” era o título que
se atribuía aos grandes fazendeiros, independentemente destes o possuirem
oficialmente. Inclusive porque, na fase de expansão das lavouras, estes se revestiam
em comandante-em-chefe de milícias armadas formadas por “jagunços” e grande
parte do respeito que gozavam vinha da quantidade “de homens que derrubara nas
matas, nos tempos do barulho.” (FALCÓN, 1995; AMADO, 2000).
[6] É interessante notar nesse
depoimento como os adventícios se agregam e são agregados à cidade de forma a
constituírem como parte dela quase que automaticamente. De fato, a partir do
ciclo do cacau Ilhéus se estabeleceu com a chegada massiva de “forasteiros”
(categoria êmica local). Muitos coronéis eram naturais de Alagoas, Sergipe,
Ceará ou do norte do Estado. Posteriormente comerciantes e exportadores do sul
do país e mesmo do exterior se assentaram na região – e todos se tornaram
igualmente “ilheenses” ou “grapiúnas”. Vale notar que um dos distintivos
culturais da região deriva dos fluxos regulares de imigrantes sírios e
libaneses desde fins do século XIX e que preferencialmente se estabeleciam no
então florescente comércio local. Ademais, a própria “saga do cacau” começaria
com as primeiras mudas trazidas do Pará pelo francês Louis Frédéric Warneaux.
[7] Esse separatismo foi corporificado
no lobby montado na Assembléia
Constituinte de 1988 para aprovar o desmembramento da região do resto do Estado
da Bahia, criando o Estado de Santa Cruz.
[8] Embora a maioria dos podutores
creditem a crise da cacau à rápida
disseminação da praga vassoura-de-bruxa (Crinipellis perniciosa), hoje
comprovadamente vinda da Amazônia, onde alguns fazendeiros ilheenses possuíam
plantações, o fato é que o débàcle do
cacau no sul da Bahia se deu tanto em função de fatores internos, com problemas ligados ao crédito e ao financiamento
dos produtores, quanto em função de fatores externos, como uma série de
flutuações cambiais da moeda brasileira nas bolsas estrangeiras, a queda do
preço do produto no mercado internacional e o aumento de produtividade da cacauicultura de base familiar na costa ocidental africana.
[10] Por muito
tempo se negou a presença indígena no local, exatamente pelo fato de que
Olivença se transformou em balneário para os mais endinheirados, e o
reconhecimento legal de que ali seria terra indígena implicaria não só na
desapropriação dos imóveis como refletiria, sobretudo, na questão do poder
local: seria inimaginável para uma família “tradicional”, cujos antepassados
“trouxeram a civilização” para região “rasgando e desbravando a mata selvagem”,
perder parte do seu patrimônio para índios “que nem índios são mais”.
Recentemente a região reviveu os conflitos, cujos efeitos se pode ver numa
carta aberta disponível na página-web da Associação Brasileira de Antropologia
(ABA, 2008).
[11] Segundo os guias locais,
cerca de 70% dos turistas de cruzeiro que desembarcam em Ilhéus vão para
Itacaré. Uma outra parte nem desembarca, de modo que apenas uma pequena parcela
desse contingente se desabala para visitar a cidade. Entre os guias costuma-se
dizer, a modo de chiste, que “Ilhéus é o receptivo de Itacaré”.
[12] Incluindo aí a falta de
treinamento da mão-de-obra e a irregularidade da qualidade do produto/serviço
oferecido: “não tenho coragem de indicar nenhum restaurante de Ilhéus ou do
Banco da Vitória pra ninguém... hoje a comida está boa, mas amanhã não sei se
vai manter a mesma qualidade, se o atendimento vai ser o mesmo”, diz um
entrevistado.
[13] Seria importante ressaltar
também o baixo grau de interação entre as instituições de ensino superior da
região e o sistema turístico local. A investigação do porquê desse
distanciamento, verificado tanto na extremidade dos gestores do turismo, quando
na extremidade das faculdades e universidade, poderia indicar pistas
interessantes para compreensão do problema mais amplo da estruturação do
sistema turístico na região.
[14] Embora o orçamento para o
turismo votado pela Câmara de Vereadores seja mais ou menos compatível com o
“tamanho” do segmento, na prática esses recursos são contingenciados pelo
executivo e canalizados para outras pastas ou “projetos” de maior conveniência
política.
[15] Segundo Goldman
(2006) é recorrente em Ilhéus avaliações negativas dos prefeitos nos seus
últimos anos de mandato.
[16] De fato, no dia 31 de agosto de 2007 o
tenente coronel Juvenal Teixeira, comandante do 2º Batalhão da Polícia
Militar do Estado da Bahia, negociava a desocupação pacífica do Palácio
Paranaguá, sede da municipalidade de Ilhéus. É que mesmo cassado o ex-prefeito
se recusava a abandonar o prédio em favor do vice e se mantinha entrincheirado,
protegido por uma milícia privada ao seu comando.