O TURISMO SEXUAL E A COMUNICAÇÃO – UM OLHAR HERMENÊUTICO SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE VISITANTES E VISITADAS

SEX TOURISM AND COMMUNICATION- HERMENEUTICS APPROACH ON GUESTS AND FEMALE HOSTS RELATIONSHIP

 

Liciane Rossetto Ferreira[1]

 

Resumo: O presente artigo tem como objeto a Comunicação e o Turismo Sexual nas relações entre turistas argentinos e moças residentes em Florianópolis (SC). A partir do método da Hermenêutica de Profundidade, que contempla a Tríplice Análise – Sociohistórica, Formal ou Discursiva e Re-interpretação – utilizamos a Semiologia de Barthes como técnica, para interpretação dos resultados dos Grupos Focais realizados em fevereiro e abril de 2007 na capital de Santa Catarina. Em alusão ao método alguns termos serão apresentados com a letra inicial maiúscula, o aspecto interpretativo justifica o uso da primeira pessoa do plural. Do mesmo modo, por ser um método interpretativo, ao invés de afirmações priorizamos relativizar, pois a interpretação é um olhar possível sobre a realidade. A interpretação do turismo sexual nas relações promovidas pela Comunicação, intenciona fomentar as discussões sobre o tema, uma vez que a pesquisa em ciências sociais aplicadas visa muito mais à compreensão dos fenômenos do que à comprovação de hipóteses.

Palavras-chave: Turismo Sexual. Comunicação. Hermenêutica de Profundidade. Semiologia.

 

Abstract: This article   focuses on the role of Communication in Sexual Tourism among Argentinean male tourists and local girls in Florianopolis (SC). Hermeneutics in Depth, Triple Analysis of Research and Barth´s Semiology were used as tools for interpretation of the data obtained from Focal Groups from February to April 2007 in the field. Some terms will be written with capitol letters and some times the pronoun “we” will be used also for methodological reasons. Interpretative method led to relativization instead of hard statements, since interpretation is a possible gaze over reality. Interpretation of sexual tourism stimulated by Communications intends to enhance discussions on the subject, since applied social sciences research aims to understand phenomena instead of proving hypotheses.

Key-words: Communication. Sexual Tourism. Hermeneutics in Depth. Semiology.

Introdução

 

 

O hedonismo, fomentado pela propaganda turística nacional, por muito tempo utilizou a imagem seminua da mulher brasileira nas fotografias publicitárias. Nosso objeto de estudo é o Turismo sexual, motivado pelo Discurso que enfatiza a imagem sensual da mulher brasileira, como Atrativo Turístico, e seus reflexos nas relações entre moças de Florianópolis e rapazes argentinos. A partir de uma vivência pessoal de oito anos[2] na capital catarinense houve o despertar de um olhar mais atento, de maneira empírica, informal, sobre as relações entre os visitantes argentinos e as visitadas florianopolitanas. Gradualmente, essas observações foram se tornando inquietações motivando o estudo.

Optamos[3] por focalizar o estudo em Florianópolis por considerá-la um destino turístico internacional, onde a existência de um turismo sexual ainda pode estar velada. Os turistas argentinos, desde a década de 1980, representam o principal segmento de visitantes estrangeiros à capital catarinense, em especial na temporada de verão.

O presente estudo sobre o turismo sexual, nas relações promovidas pela Comunicação entre turistas argentinos e moças da comunidade, em Florianópolis, Santa Catarina, contempla as análises, através da Hermenêutica em Profundidade (HP), em uma Pesquisa Qualitativa. O Turismo se apresenta, ainda, mais na forma de um objeto percebido do que na qualidade de um objeto de conhecimento, e que, por esse motivo, depende do tomar emprestada a metodologia de outras áreas para o seu estudo. Entendemos que o turismo sexual configura um problema que, para ser contemplado, requer uma referência sociocultural, por isso pensá-lo na Comunicação Social.

A resposta que tencionamos é a de trazer à tona a interpretação do Turismo sexual nas relações promovidas pela Comunicação, o que poderá fomentar as discussões sobre o tema. Temos a concepção de que a pesquisa em ciências sociais aplicadas visa muito mais à compreensão dos fenômenos do que à comprovação de hipóteses.

Estudar, através da Hermenêutica de Profundidade, a participação da Comunicação na promoção do turismo sexual, e interpretar suas manifestações nos relacionamentos entre turistas argentinos e moças da comunidade em Florianópolis, é o nosso objetivo geral[4].

Realizamos o estudo sob a tese de que a Comunicação, através das mídias de massa, seleciona aspectos da cultura brasileira produzidos como espetáculo e os apresenta como destaque, exaltando uma imagem generalizada, a partir de fragmentos, somada aos discursos que reforçam estereótipos e mitos em relação à nação e, em especial às mulheres brasileiras, alimentam o imaginário dos turistas promovendo o turismo sexual. Talvez, o público mais alcançado por estas informações seja o jovem, nascido a partir da década de 1980, que tem na televisão sua janela para o mundo.

 

Considerações teóricas iniciais acerca do Turismo Sexual

 

A idéia do prazer relacionado ao sexo permeou as mensagens da propaganda turística internacional até a década de 1980. Durante, aproximadamente, 30 anos, as chamadas publicitárias tiveram, como ênfase, imagens de sensualidade, muitas vezes apresentando, em primeiro plano fotográfico, uma bela mulher seminua e, em segundo plano, bem ao fundo, uma praia paradisíaca que poderia ser encontrada em qualquer lugar.

Piscitelli (2006) lembra que, mesmo com as diversas ações da sociedade que promoveram o abandono das imagens de sensualidade feminina na publicidade turística oficial, ainda existe uma tendência em apresentar os lugares turísticos com imagens feminilizadas e erotizadas de lugares “virgens”, que às vinculam a noção de exotismo, em um apelo ao consumo através das metáforas construídas: “a sexualização [...] também ‘age’ através da linguagem com que se descrevem as belezas naturais” (PISCITELLI, 2006, p. 233).

O tema turismo sexual necessita ser abordado em uma “escala multidimensional”, conforme propôs Opermann (1999, p. 262) quando almejou que seu trabalho encorajasse mais pesquisadores a investigar os assuntos que envolvem este tema.

Existem alguns estudos, diz Piscitelli (2006, p. 208), que observam mais o plano social do turismo:

 

Pesquisas centradas, sobretudo, em dimensões culturais, prestam atenção às alterações no sistema de valores, nos comportamentos individuais, nas condutas morais e estilos de vida coletivos; alterações na tolerância em termos de sexualidade; aumento da prostituição e da delinqüência; introdução de drogas; alcoolismo; mercantilização das culturas locais; autonomização em relação à família, à religião e aos valores comunitários; imitação e reprodução dos comportamentos estrangeiros.

 

Soares de Bem (2005, p. 20) considera que "o turismo sexual não pode ser visto isolado do desenvolvimento do próprio turismo, sua existência está intimamente vinculada aos modelos de desenvolvimento da atividade historicamente constituídos".

Ao contextualizar o sentido do turismo sexual, o folheto "O que é que a Bahia tem", do Centro Humanitário de Apoio à Mulher – CHAME (1998, p. 1) apresenta a idéia de que,

[...] sair de férias, conhecer outros lugares e, se possível, encontrar um Príncipe Encantado ou uma Cinderela para compartilhar momentos de lazer e de aventura é fantasia que povoa os sonhos de muita gente. O turismo sexual se alimenta desses sonhos. [...] historicamente, o turismo sexual surgiu como uma prática que se desenvolveu no sentido dos países ricos ou 'centrais' para os mais pobres.

 

O aspecto motivacional parece-nos de especial relevância na compreensão de que seria possível estabelecer uma tipologia de turismo sexual, em que em parte há pessoas que viajam com a motivação principal de fazer sexo, e esta motivação determina o destino de viagem. Além disso, parece existir um outro tipo de turista que escolhe o destino por seus diversos atrativos, e traz consigo, também, o desejo de sexo como elemento complementar da viagem.

Quando abordamos o tema turismo sexual é comum que venha à mente a atividade vinculada à prostituição, ou seja, ao sexo pago. Também é usual que nossas lembranças sobre o tema nos remetam à exploração sexual de menores. Entretanto, existem outras nuanças do turismo sexual que podem ser consideradas, quando ele ocorre no encontro entre visitantes e visitadas, ou visitados, sem envolver, de forma direta o pagamento, porém com, uma retribuição que, por vezes, se apresenta na forma de presentes. Ou, ainda, em última instância, quando não há nenhum tipo de retribuição financeira, todavia, o turismo sexual ocorre no exercício da liberdade sexual.

No encontro entre os turistas e a população local, as desigualdades podem ser reproduzidas pela organização comercial que se faz em torno da atividade, e essa disparidade pode acarretar impactos no âmbito social. O turismo sexual pode representar, para pessoas da comunidade, a oportunidade de ascensão social: “A exclusão social [...] é um fenômeno típico do capitalismo [...] atinge sobretudo as mulheres [...] agindo de modo distinto sobre as representações e as práticas envolvendo gêneros” (SOARES DO BEM, 2005, p. 36).

Nesse sentido, o prefácio da obra "A Dialética do Turismo sexual", redigido por Barretto (2005, p. 10), conceitua que o Turismo sexual: "[é] quando a motivação principal que atrai os turistas é praticar sexo". A autora considera que a prática do sexo pode não estar vinculada à prostituição, ou "a classes subalternas, fato que dá outro tom à discussão".

Para a Organização Mundial do Turismo, as relações provenientes desta atividade são comerciais, conforme consta no documento da entidade, intitulado "Declaração sobre a Prevenção do Turismo Sexual Organizado", de 1995[5] apresentadas como

[...] viagens organizadas no setor do turismo, ou externas ao mesmo, mas utilizando suas estruturas e suas redes, com o propósito principal de facilitar aos turistas a prática de relações sexuais comerciais com residentes do lugar de destino.

 

Parece ser neste mesmo sentido de consumo que Piscitelli (2006, p. 215) procura categorizar o turismo sexual enquanto um produto da convergência de diversos fatores, entre eles:

 

Existência de uma ‘indústria’[6] ancorada em fatores econômicos e políticos que estimula a produção de lugares de recriação voltados para o consumo do sexo, a alimentação de uma ideologia turística na qual as populações de certas regiões pobres são percebidas como atraentes e disponíveis para o consumo (sobretudo mulheres, particularmente marcadas por certos traços “raciais”) e a existência de populações cujo grau de pobreza as estimula a participar no mercado de sexo.

 

A circulação e o acesso a informações de diversas ordens promovidas pela globalização, através da Internet, parecem facilitar a busca pelo sexo pago, além de colocar outros destinos em evidência, à parte do que já poderia ser tratado como o mais usual no mercado do sexo. Piscitelli (2005, p. 286) sustenta que

nas décadas de 1980, 1990 e 2000 os percursos dos turistas à procura de sexo se voltam para outros cenários, habitados por “novos” seres apetecíveis para o consumo do sexo, ainda mais exóticos, ainda mais autênticos e, portanto, ainda mais eróticos. Nesse movimento, novas regiões-alvo, na América do Sul, tornam-se almejados destinos.

 

Ribeiro (1999), ao estudar "A prostituição de rua e o turismo no Rio de Janeiro", observou características que diferenciam três segmentos: prostitutas, michês e travestis. Em relação à prostituição feminina, o autor o subclassifica em garotas de pista e garotas de programa. As garotas de programa são as prostitutas, com nível sociocultural mais elevado, com melhores atributos físicos e que atuam através de agenciamento. As garotas de pista são as prostitutas de rua, estão nas praias, casas noturnas ou nas ruas, abordando os carros. Em relação às travestis e aos michês, rapazes de programa, Ribeiro identificou padrão similar ao das garotas de pista.

Outra tipologia está relacionada às crianças e aos adolescentes. O turismo sexual infanto-juvenil está associado à pedofilia. O aliciamento de menores ocorre, em muitos casos, com anuência da própria família, envolvendo estrangeiros, oriundos da Ásia e Europa. Uma prática que denota violência contra a criança, piora a imagem do país e produz seqüelas emocionais difíceis de superar pelo menor vitimado. É justamente no combate à pedofilia que o governo brasileiro tem centrado esforços, a partir de campanha na década de 1990, "Turismo Sexual Infantil: o Brasil está de Olho", até a proposta atual do Código de Conduta do Turismo, pela Comissão de Turismo e Desporto do Congresso Nacional.

 

As ações da sociedade civil organizada fomentaram o banimento da publicidade turística oficial que utilizava imagens sexualizadas de mulheres e estimularam campanhas governamentais contra a exploração sexual de crianças por estrangeiros. Contudo, essas imagens continuaram sendo produzidas pelo setor privado e vendidas, localmente, na forma de postais e calendários (PISCITELLI, 2006, p. 217).

 

Ao buscarmos referências sobre o tema na Mídia impressa nacional, gradualmente encontramos um aumento das matérias que denunciam a prática do turismo sexual infanto-juvenil. Mesmo assim, a questão, ainda, é pouco abordada, quando se refere aos aspectos de gênero, nos segmentos feminino, masculino e às travestis – os eventuais registros são situações de denúncia do crime de Tráfico de Seres Humanos (TSH). À parte da cidade do Rio de Janeiro, ou algumas capitais nordestinas, onde o problema é bem visível, e se mostra aos visitantes pelas ruas, praias, recepções de hotéis, e todo lugar freqüentado por turistas, no restante do país há um calar, um emudecer, como se uma bruma tentasse encobrir a imperfeição.

A lógica que parece permear esse silêncio é a de considerar que a pessoa adulta, maior de idade, é responsável por seus atos, por suas escolhas, e que estas são feitas de forma livre e consciente. Essa mesma linha de pensamento parece-nos desconsiderar aspectos de exclusão sociocultural, em uma aceitação passiva, que nem sempre pode ser de tão livre escolha dos sujeitos.

Para Barretto (2005, p. 11), "existe ainda um turismo sexual não relacionado com retribuição pecuniária, que não configura prostituição, que constitui apenas o exercício da liberdade sexual". A autora destaca que, nesses relacionamentos, a moça é tratada como a "namorada ocasional", enfatizando a prática como uma atividade extra entre pessoas de baixa renda.

As pesquisas de Piscitelli revelam que o turismo sexual pode envolver amor, sonho de casamento e ascensão social. Conforme a antropóloga Piscitelli (2004), há o cortejo, como forma de sedução, por parte dos estrangeiros, e os relacionamentos não se restringem às moças de classe pobre. Os estudos de Piscitelli (2006) também mostram que, muitas vezes, na concepção das mulheres locais, o estrangeiro incorpora atributos de masculinidade, em uma sexualização que parece estar vinculada à idéia de oportunidade de mobilidade social.

Nossas observações pessoais permitiram perceber que, a priori, em Florianópolis, esse modelo de relacionamentos, do "namoro ocasional", parece não se restringir às camadas socioeconômicas menos favorecidas: ele está presente na classe média, entre universitárias, seguindo o aspecto de "exercício da liberdade sexual" e não das cortesãs. Nas palavras de Soares de Bem (2005, p. 71), "é o clima tropical, ao lado da generosa paisagem, que fornece o pano de fundo para a representação da mulher brasileira como 'picante', sedutora, mundana e aventureira, enfim, como uma sexbombe".

Mencionando o Carnaval, como produto e identidade cultural brasileira, na relação entre as imagens e o imaginário[7], quanto à atratividade turística, Soares de Bem (2005, p. 59) acrescenta:

 

O imaginário carnavalesco ao qual se associa o Brasil contribui para realçar a beleza sensual de mulheres (no geral mulatas) que expõem sem pudor seus corpos desnudos. Tais imagens se tornam funcionais para os contatos travados na esfera do turismo, estimulando mesmo o surgimento e o estabelecimento do turismo sexual em várias regiões do Brasil.

 

Soares de Bem (2005, p. 70) complementa que o "clichê central", em relação às brasileiras, está fundamentado em construções sexistas e racistas que dão "lugar a uma representação da sexualidade [...] como erotismo explosivo". O contexto histórico desse erotismo está enraizado no colonialismo.

A sexualidade, acentuada nas terras do Brasil, foi descrita por Gilberto Freyre na obra "Casa Grande & Senzala", de 1961. No primeiro tomo, o autor dedica o capítulo dois à descrição do relacionamento do colonizador com as índias que faziam lembrar a figura mitológica da "moura encantada" de longos cabelos negros a banhar-se nos rios. No segundo tomo, o capítulo quatro intitula-se "O escravo negro na vida sexual e da família do brasileiro", em que são descritas as relações dos colonizadores com as escravas negras, e, também, em alguns momentos, com as índias. O autor (1961, p. 440) conclui: "não há escravidão, sem depravação sexual".

Nesse sentido, Piscitelli (2006, p. 213) contextualiza que

 

[...] a sexualização que torna populações das comunidades receptoras alvo de consumo sexual no marco do turismo, sobretudo mulheres e crianças que corporificam etnicidades e cores inferiorizadas, expressa apenas uma diferença no estilo de estratégias de subordinação e no grau de exploração dos seres consumidos.

 

Oppermann (1999) levanta a questão de que parece haver uma nova onda de colonialismo surgindo nos países em desenvolvimento. O autor observa que as mulheres do Terceiro Mundo parecem ser consumidas como outro recurso desses países, seja in loco ou nos lugares de prostituição em países europeus.

Contemporaneamente, Bignami (2002) afirma que as imagens do país, no exterior, são reflexos da televisão brasileira que, no conteúdo dos seus programas, idealiza um povo sensual. Barretto (2005, p.12) argumenta que "devemos reconhecer que promover oficialmente a possibilidade de sexo, como atrativo turístico, é fazer pouco da nossa cultura".

 

No caso do turismo sexual [...] é evidente que os discursos físicos continuam a ter funcionalidade, mas em uma positivação do 'outro' corpo. As preferências físicas, associadas às características do temperamento e das especificidades culturais, constroem cenários imaginários e fantasias que participam mesmo da definição dos roteiros turísticos, [...] Tais discursos estão presentes nos roteiros turísticos publicados, nas representações midiáticas em geral, na presença 'confirmadora' de integrantes de minorias étnicas e até mesmo no marketing institucional realizado por alguns países (SOARES DE BEM, 2005, p. 56).

 

O turismo sexual se apresenta como a viagem turística que inclui, no pacote, além do transporte, da hospedagem, da alimentação, o sexo com a população nativa do destino. Pode estar contratado no pacote de viagem, pode ser contratado no destino turístico, não obstante entendemos que pode, também, ocorrer na casualidade dos relacionamentos fugazes, nos "amores de verão", sem envolver, necessariamente, a exploração sexual. É uma atividade marginal do Turismo que parece nascer da pobreza e da submissão sociocultural, a qual pode se organizar de diferentes maneiras nos destinos turísticos e nem sempre está, diretamente, atrelada à prostituição e ao comércio do sexo.

 

Algumas considerações sobre Florianópolis

 

A capital catarinense é um exemplo de localidade que passou por seu "boom" turístico na década de 1980, quando foi massivamente visitada, em especial por argentinos. Desde então, parece notável a relação controversa entre a comunidade local e os turistas estrangeiros, e percebe-se certa ambigüidade nas relações de troca que ali se estabelecem: a comunidade, muitas vezes, manifesta aversão à presença dos visitantes; ao mesmo tempo, depende financeiramente dos dólares trazidos na bagagem dos forasteiros, quer seja na economia formal ou na informal.

No início de 1990, foi registrado pelos órgãos públicos o triplo de visitantes na Ilha. Rapidamente, as vilas de pescadores se transformaram em centros turísticos, acarretando transferências e elevação do valor comercial da posse da terra. Além da expansão hoteleira, muitas residências de veraneio passaram a ser destinadas ao aluguel por temporada aos turistas.

As águas cristalinas e o mar tranqüilo, ambos aliados aos preços acessíveis pela relação cambial com os países do cone sul, foram fatores elementares para a atração de grandes contingentes de turistas. Ademais, um esforço conjunto dos órgãos públicos em divulgar e dos operadores de turismo em organizar pacotes, incluindo vôo charter[8] e hospedagem, promoveu o crescimento do fluxo turístico. O modelo de turismo sol e praia, com a presença massiva de turistas da Argentina, provocou certa xenofobia por parte da população local e "desprezo por parte dos turistas, que vinham à procura de um estereótipo de país tropical e mulheres fáceis vendido pelas agências", conforme relata Barretto (2004, p. 144).

A realidade turística de Florianópolis não difere daquela de muitos destinos internacionalmente consolidados pelo mercado das viagens. O fenômeno turístico parece provocar abalos nas estruturas sociais, muitas vezes fazendo ressurgir problemas históricos que reportam ao colonialismo, ao preconceito, à sujeição. Não raro, o cerne das complexas e múltiplas inter-relações promovidas pelo turismo produz efeitos nocivos. O turismo sexual parece não ser o atrativo principal, mas a motivação que acompanha o turista argentino, ao buscar Florianópolis em suas férias. Nesse sentido, o interesse do turista pela mulher nativa expressa a busca do viajante pelo que nutriu sua expectativa, como parte do produto que satisfaz seus desejos e expectativas.

Conforme o clamor de Krippendorf (1989, p. 91) "a voz dos viajados continua praticamente inaudível", silencia-se a comemoração de que a agitação turística seja sazonal e não dure o ano inteiro. As populações residentes dos destinos turísticos é que parecem ter que se adaptar aos viajantes, e não o contrário, acolhendo de maneira voluntária, ou não, os visitantes. A antiga virtude da hospitalidade tornou-se um "ganha-pão". Krippendorf (1989) alerta para a quase inexistente produção de estudos a respeito das comunidades que acolhem os fluxos turísticos, em especial os relacionados aos custos sociais: adoção de hábitos de consumo e comportamento dos turistas; servilismo; prostituição e criminalidade; declínio cultural pela adaptação ao gosto estrangeiro; comercialização do folclore; a vida de acordo com as regras estrangeiras.

 

Aspectos metodológicos

 

O método escolhido para estudo é a Hermenêutica de Profundidade (HP), proposta por John Thompson. A HP é um referencial metodológico amplo, que prioriza o estudo da produção de sentido, através das Formas Simbólicas a partir da Tríplice Análise que contempla a Análise Sociohistórica, Análise Formal ou Discursiva e a Interpretação e Re-interpretação. As Formas Simbólicas (imagens, textos, falas, ações) são formuladas e recebidas em contextos específicos e, muitas vezes, diversos. Enquanto construções significativas, estruturadas, inseridas em condições sociohistóricas, as Formas Simbólicas são compreendidas e interpretadas por quem as recebe e as produz.

Thompson (1995) sugere como técnica para a Análise Formal ou Discursiva a Semiótica. De acordo com Ramos (1998), a Semiótica, em Barthes, tem uma tonalidade específica, ungida como Semiologia e ganha nova denominação batismal. A palavra Semiologia deriva do grego[9], semeion, e significa estudo dos sinais, termo empregado por Saussure. Essa idéia nos interessa por concordar com o objeto de estudo.

 

Aspectos sociohistóricos

 

A circulação de informações foi facilitada na Antigüidade pelo desenvolvimento da navegação, com vistas ao comércio. Este fato também fomentou a participação de viajantes letrados para a elaboração dos relatórios noticiosos a respeito da experiência vivida, talvez uma forma de apropriação do que seria abstrato.

Morin (2001) considera a globalização como um resultado do que iniciou com a expansão européia, com a unificação dos danos causados pelos micróbios, pela escravidão dos negros e das populações conquistadas. O autor corrobora a idéia de Freyre (1961) ao aludir que no Brasil houve uma ‘sifilização’ antes de uma civilização, onde as escravas negras foram contaminadas pelos senhores brancos, e elas transmitiram a doença aos escravos negros.

 

O negro se sifilizou no Brasil. [...] Foram os senhores das casas-grandes que contaminaram as negras das senzalas. Negras tantas vezes entreguem virgens, ainda molecas de doze ou treze anos, a rapazes brancos já podres de sífilis das cidades. Porque muito tempo dominou no Brasil a crença de que para o sifilítico não há melhor depurativo que uma negrinha virgem. O Dr. João Álvares de Azevedo Macedo Júnior registrou, em 1869, o estranho costume (FREYRE, 1961, p. 441).

 

A função sexual, coisificada historicamente, do corpo servil da mulher negra parece estar no passado inscrito na memória de nossa sociedade: ao ser escravizada era concubina do seu senhor e de seus convidados, em uma prostituição doméstica, sujeita a toda forma de depravação.

A idéia de que a lubricidade brasileira se deve aos negros africanos é rebatida pelos argumentos de Freyre (1961 p. 440), de que os negros teriam menor apetite sexual em relação aos europeus, e necessitariam de um rito de excitação por serem as mulheres negras mais frias do que fogosas:

 

É uma sexualidade, a dos negros africanos, que para excitar-se necessita de estímulos picantes. Danças afrodisíacas. Culto fálico. Orgias. Enquanto que no civilizado o apetite sexual de ordinário se excita sem grandes provocações. Sem esforço.

 

Ainda, em Freyre (1961), constatamos que os aspectos erotizados das danças brasileiras podem representar muito mais uma necessidade de estimulação do que a voracidade sexual.

 

As danças eróticas parece que quanto mais freqüentes e ardorosas, mais fraca sexualidade indicam. [...] Desempenhando funções de afrodisíaco, de excitante ou de estímulo à atividade sexual, tais danças correspondem à carência e não ao excesso, como a princípio pareceu a muitos e ainda parece a alguns, de lubricidade ou de libido (FREYRE, 1961, p. 140).

 

Para compor a obra “Casa Grande & Senzala”, Freyre realizou ampla pesquisa em arquivos estrangeiros e nacionais, em busca dos diários de senhores de engenho e de viajantes, que relataram o modo de vida em terras brasileiras, em relação aos hábitos dos índios: “Baker salienta a inocência de certos costumes – como o de ofertar mulheres ao hóspede – praticados sem outro intuito senão o de hospitalidade” (FREYRE, 1961, p. 142).

 

A luxúria dos indivíduos soltos, sem família, no meio da indiana nua, vinha servir a poderosas razões de estado no sentido do rápido povoamento mestiço da nova terra. E o certo é que sobre a mulher gentia findou-se e desenvolveu-se, através dos séculos XVI e XVII, o grosso da sociedade colonial, num largo e profundo mestiçamento, [...] O ambiente em que começou a vida brasileira foi de quase intoxicação sexual. O europeu saltava em terra escorregando em índia nua [...]. As mulheres eram as primeiras a se entregarem aos brancos, as mais ardentes indo esfregar-se nas pernas desses que supunham deuses. Davam-se ao europeu por um pente ou um caco de espelho (FREYRE, 1961, p. 130).

 

Thompson (1995) atribui ao início da circulação das Formas Simbólicas um processo decorrente do comércio de livros. Os relatos dos viajantes ofereciam as informações sobre as novas terras ‘descobertas’ da mesma forma que tornavam comum aos europeus os hábitos e costumes dos povos habitantes desse chamado novo mundo.

A marca seguinte desta transmissão de Formas Simbólicas pode ter origem no desenvolvimento tecnológico do século XIX, ainda que tenha se manifestado, de fato, no século seguinte, momento considerado por Thompson como balizador do fenômeno de Globalização da Comunicação.

Diferente de outras regiões do Brasil, o estado de Santa Catarina guarda, nos traços físicos de sua população, características mais européias do que afro-indígenas, embora exista a miscigenação racial. A constituição física é similar à do estrangeiro, mas o comportamento, como apreendido pelo visitante, é considerado mais sensual.

É possível que essa sensualidade seja, de fato, um traço cultural brasileiro, mas, também, é possível que essa tipicidade esteja associada a uma necessidade de subsídios, como as roupas e as danças, que alimentem o imaginário, em ritos de excitação. De certo modo, esses subsídios podem ser considerados Formas Simbólicas. O tempo histórico parece mostrar um agendamento[10] do estereótipo de sensualidade, com ênfase à mulher brasileira. A onipresença da mídia na vida contemporânea pode ser um fator contributivo para a fixação de uma imagem acerca do Brasil e do seu povo.

O exercício da liberdade sexual, com certa freqüência, tem se manifestado de modo precoce, desde a adolescência, e abrangente em relação ao hábito comportamental. A gíria “ficar” envolve uma oposição ao sentido etimológico do verbo de fixar – permanecer, manter, continuar – evidencia a lógica de consumo de nossa sociedade. O hedonismo parece estar presente no turismo como elemento constituinte das motivações de viagem, ao mesmo tempo em que é característica do comportamento contemporâneo. Em Barthes (1975, p. 144) encontramos a noção de que “a irresponsabilidade ética do turista” é natural nas viagens.

É possível considerar que a relação afetivo-sexual com as moças da comunidade possa ser interpretada pelos[11] turistas como parte do pacote de férias. Pelos ambientes freqüentados, mais turísticos e menos populares, percebemos que as relações não se restringem às camadas menos favorecidas da população local, mas incluem pessoas de maior poder aquisitivo.

Esse hedonismo mais proeminente, ao qual fazemos referência, diz respeito a um comportamento em que a busca pelo prazer, intrínseca às motivações de viagem, se mostra nos excessos de uso de bebidas alcoólicas, na prática sexual com múltiplos parceiros, no uso de drogas ilícitas, enfim, numa evasão exacerbada do cotidiano, protegida pela máscara do tempo/espaço que o momento turístico oferece. Pode ser uma ocasião de ruptura com os códigos de conduta estabelecidos no ambiente de convívio habitual, das relações sociais e profissionais. Muitos turistas se encontram embalados por expectativas de vivenciar a aventura do desconhecido, da novidade.

 

Análise formal ou discursiva

 

O turismo sexual, conforme as narrativas das entrevistadas, é freqüente, em Florianópolis: em hotéis, inclusive de categorias superiores, nas ruas e em casas de prostituição. O mapeamento desses espaços, citado pelas moças, indica tanto o caminho para o Norte da Ilha quanto o centro político-administrativo da cidade. Quanto ao gênero, englobam o feminino, o masculino e o transexual. Também se referiram a uma possível exploração sexual infanto-juvenil, sem citar exemplos específicos de locais de ocorrência. O episódio do turismo sexual nos hotéis é negado ou ocultado pelas gerências, ainda que exista.

Outra observação, das entrevistadas, é a prática dos hotéis de aceitar que o acompanhante não seja registrado por ocasião de seu ingresso no local. Essa atitude encobriria o relacionamento de homens casados com suas amantes.

Conforme Krippendorf (1989), a comunidade local, muita vezes silencia a comemoração de que a agitação turística seja sazonal e não dure o ano inteiro. Pelas narrativas das entrevistadas, as justificativas para o “não gostar” dos argentinos estão na sobrecarga da infra-estrutura básica, que não suporta o atendimento das necessidades da comunidade quando se soma a uma população flutuante que exige essas mesmas estruturas. O incômodo parece estar, exatamente, na obrigação de a comunidade se adaptar aos visitantes, uma adaptação nem sempre espontânea.

A idéia de que “dá um dinheirão no verão”, alude ao que Krippendorf (1989) considera a predominância do interesse econômico, categorizado pelo autor em quatro grupos: do contato permanente e direto com o turista; dos proprietários de negócios turísticos; dos habitantes que mantêm contato direto com os turistas, embora apenas uma parte dos seus ganhos venha da atividade; e, por fim, o grande número de nativos que quase nunca interage diretamente com os turistas.

Outro aspecto, alusivo ao turismo, em Krippendorf (1989), se refere aos custos sociais decorrentes da atividade, na adoção de hábitos de consumo e comportamento dos turistas, no servilismo, ou no aumento da prostituição. A existência do porto do Desterro, até o início do século XX, pode ter motivado a presença de prostitutas na região, considerando o movimento de chegada e saída de viajantes e o comércio. Pela proximidade com o antigo porto – existente antes do aterro – e, também, pela proximidade com o Mercado Público e a Alfândega, a Rua Conselheiro Mafra, no centro de Florianópolis, é uma zona de prostituição das mais remotas, desde o início do século XX – época da construção do Mercado. E é a partir desta edificação, que inicia o trecho onde atua a prostituição feminina de rua. As entrevistadas a referiram como a “Rua das Tias”, numa clara alusão à idade das profissionais do sexo naquela região. Essa mesma região passou a abrigar os pontos de prostituição masculina e de travestis.

Conforme a caracterização, descrita pelas entrevistadas, a zona de prostituição, na parte insular de Florianópolis, ganhou novos contornos, e uma segmentação territorial expandiu-se tanto na região central quanto na porção norte, pela rodovia estadual que é o principal acesso aos balneários. Esse aumento da prostituição é apontado por Krippendorf como custo social da atividade turística. Sobre a utilização das expressões mercado do sexo ou prostituição, Piscitelli (2005, p. 7-8) esclarece:

 

As definições correntes da prostituição tampouco contribuem para pensar nos diversos tipos de inserção em um jogo de oferta e demanda de sexo e sensualidade que, marcado pela mercantilização, não necessariamente assume a forma de um contrato explícito de intercâmbio entre sexo e dinheiro. Em outras palavras, a inserção no mercado do sexo está longe de restringir-se à realização do que, no Brasil, é popularmente conhecido como programas. Como exemplo, cito a conhecida figura, no país, do “velho que ajuda”, meio através do qual, jovens das camadas populares, inclusive garotas que não são consideradas prostitutas, procuram apoio econômico e muitas das interações presentes nos universos do turismo à procura de sexo, em diversas partes do mundo, envolvendo viajantes (homens ou mulheres) dos países ricos em direção a regiões pobres.

 

Ao longo da Rodovia Estadual 401 (SC 401), entre o eixo central da Ilha, no bairro Trindade, e o seu limite final em Canasvieiras, estão instalados cerca de cinco motéis, dos de maior evidência da cidade. Além dos motéis, ao longo dessa rodovia estão localizadas diversas casas de prostituição, conforme as entrevistadas, tanto feminina quanto masculina, e é possível encontrarmos profissionais do sexo, na beira da estrada, próximos a estas casas, em especial no trecho norte da via. Muitos pontos de ônibus, na SC 401, também são utilizados como pontos de prostituição.

Quiçá seja possível dizermos que, diferente do Rio de Janeiro, onde os turistas sexuais buscam os espaços de prostituição, conforme narra Ribeiro (1999), em Florianópolis parece que a prostituição recorre aos lugares do Turismo. Além do meretrício de rua, e de uma casa de prostituição, em específico, as entrevistadas referiram a existência de um turismo sexual ocorrente em Florianópolis nos meios de hospedagem. A prática do turismo sexual é atividade ilegal no Brasil, quando com menores de 18 anos, mas, conforme já referido, ainda se silencia qualquer manifestação de apoio ou repúdio quando se trata de pessoas maiores de idade.

Considerando que, no ambiente hoteleiro, a segurança e o bem-estar dos hóspedes é responsabilidade do empreendimento, muitos hotéis adotaram medidas para inibir e regular a presença de profissionais do sexo em suas unidades habitacionais. Por outro lado, o agenciamento da prostituição por parte dos recepcionistas de hotel é remunerado em altas cifras pelas casas de meretrício[12], chegando a equiparar em uma noite, através das comissões, o valor do salário mensal do cargo.

Como mencionaram as entrevistadas, a abordagem dos profissionais da hotelaria a presumíveis situações de exploração sexual infanto-juvenil pode ser difícil, em parte pelos possíveis constrangimentos que podem ser gerados ao solicitar a documentação do menor acompanhante de um adulto ou casal. A complexidade no controle, pode, ainda, se agravar quando a pedofilia ocorre em motéis, visto que a maior parte desses meios de hospedagem, ao primar pela privacidade, não identifica os ocupantes do veículo, e, não havendo o desembarque dos hóspedes, fica impossibilitado o contato visual com seus ocupantes pelo pessoal de recepção.

Parece ser usual que as gerências hoteleiras não se manifestem a respeito da prostituição nos hotéis, ou, quando o fazem é com um discurso de que o empreendimento é contrário a tais práticas. Além disso, dificilmente o hotel autoriza entrevistas com os empregados quando o tema é o turismo sexual.

A liberação sexual feminina parece ter chegado à geração das moças entrevistadas, caracterizada pela multiplicidade de parceiros e a desconexão entre o ato sexual e a busca de prazer de uma relação amorosa. Ao mesmo tempo, tal liberdade sexual parece não ter sido plenamente compreendida pelos rapazes com quem elas convivem.

Através das narrativas das entrevistadas, parece que se evidencia o uso exploratório do corpo, especialmente o feminino na mídia, mesmo que não seja algo exclusivo do Brasil. O próprio Carnaval perdeu muito de sua espontaneidade, para se tornar um espetáculo midiático, produzido para o consumo nos meios de Comunicação de massa, estereotipado em sua produção artística. As entrevistadas fizeram referência à prática do topless, que no Brasil, parece ter sido, historicamente, acompanhada de polêmica. Mesmo podendo parecer normal aos olhos dos estrangeiros, e freqüente no carnaval-espetáculo, nos desfiles das escolas de samba, o topless não acontece nas praias; ainda que a cultura brasileira seja o resultado de uma grande miscigenação, que incluiu os aspectos afro-indígenas, povos praticantes do topless, o hábito de não trajar nada da cintura para cima não emplacou no Brasil, nem mesmo nas praias.

Não obstante, as entrevistadas aludiram a uma Comunicação interpessoal entre os argentinos que visitaram o Brasil e seus conterrâneos, em que a noção de que a brasileira é sexualmente disponível se reforça nos discursos, a partir do quê os turistas viveram ou observaram em Florianópolis. De certo modo, é possível dizermos que as Formas Simbólicas manifestam uma dominação de gênero.

Apesar de uma suposta apropriação de comportamentos masculinos, como é o caso do assédio, as moças se refugiam sob a máscara da embriaguez que, em parte, pode estimular ou, em parte, pode encobrir o comportamento licencioso. A prática sexual parece se situar na oposição entre o exercício de poder feminino sobre seu próprio corpo e o reforço do poder masculino sobre o corpo da mulher – sem perder de vista que a nossa alusão ao Poder se abriga em Barthes (1997), Libido dominandi, que permeia todas as formas de relações sociais.

A população local, de Florianópolis, convive com os visitantes em seu momento de ser turista. O comportamento das pessoas em férias tende a não ser uma reprodução de seu cotidiano, pelo contrário, com certa freqüência, se manifesta de maneira a extravasar as pressões rotineiras. Os visitados podem assimilar os hábitos de consumo, adotados pelos visitantes que estão em um momento de evasão.

A relação entre visitantes e visitados parece reproduzir uma lógica de consumo, de prestação de serviços, mediante remuneração, sem que se estabeleçam intercâmbios culturais, sem um convívio capaz de estabelecer um conhecimento mais profundo do outro. Seria uma predominância do interesse econômico.

Foi reiterado pelas entrevistadas que a ocorrência do turismo sexual é silenciada, ainda que evidente em determinados locais. Mesmo no momento em que se reconhece a existência de um turismo sexual, a referência, também, é projetiva, como se fosse possível isolar o problema em um grupo social. Nas falas das moças, ficou explícito que existe o turismo sexual em Florianópolis, e que se apresenta com diferentes matizes, caracterizado pelo meretrício, tanto de rua quanto em prostíbulos, ou mesmo nos hotéis, inclusive os de categorias superiores, envolvendo a prostituição masculina e feminina e a exploração sexual infanto-juvenil.

 

A interpretação e re-interpretação

 

As duas principais idéias associadas ao Turismo sexual são de prostituição quando envolve mulheres maiores de idade, e de exploração sexual quando envolve crianças e adolescentes. As expressões usadas pelas entrevistadas refletem, principalmente, esses dois grupos, o feminino e o infanto-juvenil.

As entrevistadas marcaram bem a presença da prostituição ao longo da rodovia que dá acesso aos balneários, que ficam ao norte da Ilha de Santa Catarina, na mesma estrada que abriga alguns motéis e casas de meretrício. Se o olhar do turista é construído por signos, e esse sujeito se inflama à procura de sinais, de demonstrações, encontra nas placas, que anunciam os empreendimentos ligados à prostituição, e na presença de profissionais do sexo na rodovia, os elementos visuais que confirmam a erotização do lugar.

No entanto, no discurso das entrevistadas, a relação das moças da comunidade com os turistas argentinos não é percebida como uma forma de turismo sexual. Tampouco, as moças que atuam nos prostíbulos mais caros são denominadas, pelas entrevistadas, de prostitutas. Elas seriam garotas de programa, e, pela descrição que obtivemos, a maioria é de universitárias, inclusive de classes mais altas. Da mesma forma, a narrativa das entrevistadas marcou a projeção das ações socialmente não aceitas sobre outros, ao negarem que tais moças seriam naturais de Florianópolis.

As pesquisas de Piscitelli (2006, p. 219-220) mostram que nos depoimentos disponíveis no site World Sex Archives[13] são contrastadas as cidades nordestinas com as cidades do sul do país, estas últimas consideradas de classe social mais elevada. A pesquisadora descreve uma linha de conversação capturada do site em março de 2003:

 

Floripa, sem dúvida, é uma bela cidade... mas não é o melhor lugar para o hobby [turismo sexual]... você pode encontrar algumas não profissionais de férias, mas não se impressionarão com um gringo, a maioria são garotas de classe alta de São Paulo, Porto Alegre ou Argentina... Recife e Fortaleza são mais adequadas.

 

Diferente do que foi encontrado por Piscitelli (2004, p. 298), ao estudar o turismo sexual, em Fortaleza, onde as moças de classe média “intercambiam sexo por bens e vantagens materiais”, parece que em Florianópolis as práticas que envolvem esse grupo social são de pagamento direto, no caso das garotas de programa, ou são exercício da liberação sexual, no caso das que “ficam” com turistas.

Nossas entrevistadas comentaram a existência do turismo sexual nos hotéis de Florianópolis, inclusive, nos de categoria superior. Enfatizamos essa classe, pois, muitas vezes, a prostituição ocorre em hotéis de camada inferior mediante a cobrança de frações de horas ao invés de diárias. A posição dos meios de hospedagem em relação a essa prática, consoante com as nossas observações, parece corresponder a três possibilidades: a tolerância, o incentivo e a intolerância.

Alguns hotéis toleram a presença de profissionais do sexo para atender à demanda de seus hóspedes, com certa assiduidade: são executivos que recorrem aos serviços sexuais e utilizam a unidade habitacional para tal. Outros meios de hospedagem incentivam a prática ao oferecerem aos hóspedes um book, como um cardápio, com profissionais do sexo, que freqüentam o hotel quando há solicitação. A postura de intolerância pode ser reconhecida com maior constância em hotéis nordestinos que aderiram a campanhas de combate ao turismo sexual, entretanto, barrar a presença de profissionais do sexo pode ser difícil no momento em que o visitante estrangeiro faz o registro de acompanhante.

Uma das entrevistadas que trabalha na recepção de um hotel de praia, de categoria superior, comentou haver presenciado a hospedagem de homens argentinos com suas amantes, por vezes, brasileiras, por vezes argentinas. Mesmo no cadastro dos hóspedes pode ser difícil perceber uma situação de turismo sexual, pois os profissionais do sexo que atuam em meios de hospedagem não usam vestimentas que os caracterizem de maneira estigmatizada.

Na força do desejo, na analogia entre imagens, o imaginário pode estar alimentado pela fantasia, referente ao que representa o estrangeiro, outrora o dominador, e, agora, quem sabe, submisso à dominação da mulher nativa. O imaginário das moças pode estar manifestado nas alusões à aparência, à beleza, ao corpo físico e à roupa que compõe elementos para a sedução.

A relação entre visitantes e visitados parece enfatizar a predominância do interesse econômico ao reproduzir uma lógica de consumo, sem que se estabeleçam intercâmbios culturais, sem um convívio capaz de estabelecer um conhecimento mais profundo do outro.

A sexualidade aparece nos discursos dos grupos entrevistados em uma denotação de prazer corporal, mas com uma conotação de dominação, de poder, no mesmo sentido proposto por Barthes, de libido dominandi, ora sobre o próprio corpo, ora sobre a outra pessoa. É admissível, a partir desta categoria, entender o turismo sexual como um exercício de poder sobre o outro, por parte de quem o pratica.

O fenômeno da Comunicação propaga idéias em diferentes culturas, também distintas em regiões geográficas, através das mídias. A circulação de mensagens, através da globalização, mobiliza significado para além do contexto social, no qual as Formas Simbólicas são produzidas. Parece ter sido concomitante ao desenvolvimento tecnológico a circulação das Formas Simbólicas, o que coincide com o crescimento turístico ocorrido em Florianópolis a partir da década de 1980.

Ao estudarmos a formação do estereótipo sensual da mulher brasileira e a cristalização da idéia do sexo como expressão da hospitalidade, encontramos referências nas raízes históricas do país, do descobrimento, passando pelo colonialismo, pela modernidade, até os dias atuais. O que parece ter iniciado com o interesse sexual das índias pelos aventureiros portugueses, foi transposto aos escravos negros que serviam aos senhores de engenho e seus convidados, também na sujeição sexual. Ao longo do tempo, a sensualidade da mulata parece ter sido agendada em diversas Mídias, contribuindo para a cristalização de um estereótipo da mulher brasileira.

Em relação à categoria mito, é possível trazer de volta a citação de Barthes (2003, p.68): “mito do Paraíso [...] representação de um optimum climático: ‘paraíso’; sua origem nos países quentes”: parece ser o mito que dá pano de fundo ao imaginário.

O Carnaval, que seria a festa, uma expressão da cultura popular, foi citado nos discursos, com uma conotação mais à desordem do que aos festejos. Porém, a festa da carne se reafirma no Carnaval, como o foi no paganismo, ao se vestirem as fantasias da aparência e a máscara das diferentes personas – representação que talvez seja, ou talvez não seja a realidade.

A cultura, para Barthes, é o que fica. Por seu comportamento ou por seu modo de vestir, visitantes e visitadas foram categorizados pelos respondentes. A cultura está em toda parte, é a escuta das diferenças, um campo de dispersão das linguagens, em que há sempre uma porção que o outro não compreende. É possível que no que encontro das diferentes culturas, promovido pela atividade turística, haja uma incompreensão no que se refere aos distintos hábitos de um ou outro povo.

A diferença cultural parece evidenciar-se na desigualdade e no exercício do poder, que permeia as formas de relação social, a dominação e o prazer, a autoridade sobre o próprio corpo. A prática sexual parece se situar na oposição entre o exercício de poder feminino sobre seu próprio corpo e o reforço do poder masculino sobre o corpo da mulher. Talvez, as Formas Simbólicas manifestem uma dominação de gênero. A Libido dominandi que é o poder utiliza o estereótipo, imagem fixa, que, pela repetição, alimenta o Imaginário, essa incerteza de verdade. O cenário dá lugar à fantasia que enche o sujeito da enunciação. Para as moças o turista pode representar o estrangeiro que outrora foi o dominador e, agora, quem sabe, esteja submisso à dominação sexual da mulher nativa. O imaginário das moças pode estar manifestado nas alusões à aparência e ao possível status advindo do relacionamento com os visitantes. Ainda que o turista possa representar um outro modo de vida, distinto do habitual dos jovens locais, a sua presença em Florianópolis deixa de ser extraordinária, incomum, para a geração das moças entrevistadas.

É possível que os Meios de Comunicação influenciem as atitudes das moças em Florianópolis, além dos aspectos que dizem respeito ao vestuário, mas nos costumes. A Comunicação pode atuar na promoção do turismo sexual, tanto através das Mídias quanto nas relações interpessoais, e como isto se manifesta na desigualdade da percepção que os visitantes e as visitadas têm sobre os relacionamentos afetivo-sexuais entre turistas argentinos e moças da comunidade em Florianópolis.

As moças entrevistadas, na faixa etária de 18 a 20 anos, nasceram entre 1987 a 1989; pertencem a uma geração que cresceu com os olhos na televisão – o aparelho institucional responsável, em parte, pela difusão seletiva das Formas Simbólicas. Parece ser a televisão a alimentadora de informações, a responsável pelo estabelecimento de uma janela para o mundo. A possibilidade de controle da mulher sobre o seu próprio corpo, fomentada pelos métodos anticoncepcionais contemporâneos, pode ter sido a promotora dos múltiplos relacionamentos afetivo-sexuais. A liberação sexual feminina parece ter chegado à geração dos sujeitos entrevistados caracterizada pela multiplicidade de parceiros e a desconexão entre o ato sexual, busca de prazer, de uma relação amorosa, e, ao mesmo tempo, tal liberdade sexual parece não ter sido plenamente compreendida por muitos jovens.

É possível que a desestruturação familiar, tão presente em nossa sociedade, promova, em seus membros, a busca por novos vínculos para suprir a carência emocional e afetiva, outrora provida no compartilhar do lar. A personalidade em formação dos jovens pode ser um recipiente da carga de vazio existencial, no estabelecimento de novas formas de relação. A sexualidade parece se manifestar cada vez mais cedo e com maior intensidade. As expressões sexuais têm começado cada vez mais cedo, mesmo que não configurem a cópula propriamente dita, mas a prática social do “ficar” – as carícias, o beijo na boca.

Percebemos que o turismo sexual, na condição de parasita do fenômeno turístico, de modo orgânico, não pertence ao turismo, no entanto, está nele, na condição similar a um organismo que vive em outro organismo, dele obtendo alimento e causando-lhe dano. O turismo sexual parece munir-se da submissão sociocultural e da pobreza, situações em que a pessoa não escolhe de forma livre e consciente; são conseqüências da exclusão social. O turismo sexual, conforme nosso estudo em Florianópolis, se configura como a viagem que engloba, além do uso dos equipamentos e serviços turísticos, o sexo com a população local do destino. Pode acontecer na eventualidade dos "amores de verão", sem envolver a exploração sexual ou a prostituição. Na qualidade de manifestação da liberdade sexual, pode ocorrer em camadas socioeconômicas mais elevadas. Talvez não seja um serviço prestado por remuneração, e, sim, uma motivação de viagem intrínseca ao turista.

Florianópolis não é rotulada como um destino de ocorrência do turismo sexual. Essa atividade parece ser silenciada, mesmo que ela seja evidente em determinados locais. A referência das moças da comunidade à existência de um turismo sexual é projetiva, como se fosse possível isolar o problema em certos grupos sociais: garotas de programa, prostitutas, travestis. Nas falas das moças, a existência do turismo sexual se apresenta com diferentes matizes: o meretrício de rua e em bordéis; prostituição masculina e feminina, e a exploração sexual infanto-juvenil nos hotéis. Nesse sentido, é possível dizer que as duas principais alusões ao turismo sexual são de prostituição, quando envolve mulheres maiores de idade, e de exploração sexual, quando envolve crianças e adolescentes.

Uma evasão exacerbada do cotidiano e protegida pela máscara do tempo/espaço que o momento turístico pode oferecer marca o hedonismo proeminente, que diz respeito a um comportamento em que a busca pelo prazer, intrínseca às motivações de viagem, se mostra nos excessos de uso de bebidas alcoólicas, na prática sexual com múltiplos parceiros, no uso de drogas ilícitas. É possível que o momento turístico seja uma ocasião de ruptura com os códigos de conduta estabelecidos no ambiente de convívio habitual e das relações sociais e profissionais.

Algo que pareceu plausível, a partir de nossas leituras, para categorizar o turismo sexual, se mostrou através deste estudo: parece mesmo existir uma modalidade dessa atividade, na qual os turistas viajam com a motivação principal de fazer sexo, e esta motivação determina a escolha do destino de viagem. Por outro lado, encontramos, em nossas pesquisas, turistas que optam por certo destino em virtude dos seus atrativos, porém, trazem consigo o desejo de sexo como elemento complementar da viagem. Da mesma forma que o foi na Antigüidade, a viagem continua sendo um meio de Comunicação.

A pesquisa em Ciências Sociais aplicadas busca a compreensão dos fenômenos, o que abre espaço contínuo para novas investigações, uma vez que a sociedade é dinâmica, e as múltiplas relações humanas. Entendemos que o estudo por hora apresentado se encontra na condição de uma primeira etapa, não conclusiva, sobre o tema.

 

 

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Artigo recebido em abril de 2008.

Aprovado para publicação em maio de 2008.

 



[1] Graduação em Turismo (1993) e doutorado em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2007). Docente do Centro Universitário Metodista, do Instituto Porto Alegre da Igreja Metodista, na graduação e pós-graduação lato sensu, onde exerce a Coordenação de Curso. É pesquisadora na área de Comunicação e sobre o Turismo Sexual. E-mail: licianeferreira@uol.com.br

[2] O presente artigo é um recorte da tese de doutorado em Comunicação Social defendida em 2007. A autora residiu em Florianópolis no período de março de 1994 a julho de 2002.

[3] “[...] fomos ‘nós’: todos aqueles que tacitamente, ou inconscientemente citei, chamei, e que são ‘leituras’, não ‘autores’” (BARTHES, 1975, p. 94).

[4] Neste texto concentraremos a atenção nos resultados das entrevistas com as moças da comunidade.

[5] Disponível em http://www.world-tourism.org

[6] Utilizamos o termo ‘indústria’ entre aspas por não concordarmos com esta visão, mas mantemos o termo original utilizado pelos autores.

[7] No sentido barthesiano (1999, p. 45-46) é a “inconsciência do inconsciente”, para o semiólogo “o Imaginário é a linguagem por meio da qual o enunciante de um Discurso (entidade puramente lingüística) ‘enche’ o sujeito da enunciação (entidade psicológica ou ideológica)” (BARTHES, 2004, p. 128).

[8] Vôo fretado.

[9] Semio – transliteração latinização da forma grega semeîon.

[10] De acordo com Wolf (2002, p.145), a agenda setting, é uma hipótese que coloca “[...] o problema de uma continuidade em nível cognitivo, entre as distorções que se geram nas fases produtivas da informação e os critérios de relevância, de organização dos conhecimentos, que os consumidores dessa informação absorvem e de que se apropriam”. Três dos pressupostos principais da hipótese de agendamento são, para Hohlfeldt (2001, p. 192): o da existência de um fluxo contínuo da informação, onde os meios de comunicação influenciam o receptor a médio e longo prazo e, ainda, que os meios de comunicação são capazes de, a médio e longo prazo, influenciar sobre o que falar e o que pensar. O autor complementa que “o agendamento se dá necessariamente no tempo”.

[11] A partir de nossos estudos sobre o tema, relatos acerca do turismo sexual, que envolvam o ponto de vista feminino, no assédio aos homens, são raramente encontrados e dizem respeito muito mais a mulheres maduras, descasadas, do hemisfério norte, que buscam sexo comercial em países caribenhos, com homens nativos, tal é o caso de Cuba. Outro aspecto eventualmente encontrado, como resultado de pesquisas, se refere ao turismo de pessoas solteiras, ou turismo single, que procura por destinos turísticos onde o hedonismo é mais acentuado nas relações entre os turistas, por exemplo, em Cancún (México) ou Ibiza (Espanha).

 

[12] Em estudo realizado sobre a Prostituição nos Hotéis Executivos de Porto Alegre, Madeira (2006) mostra, através de entrevistas realizadas com recepcionistas noturnos, que a comissão por prostituta/dia chega a R$ 30,00, enquanto que, em média, o salário mensal para o cargo de recepcionista é de aproximados R$ 500,00.

[13] http://www.worldsexarchives.com/ – é uma base de dados interativa com objetivo de fornecer informações sobre a prostituição a partir do relato de experiências e fotografias fornecidas por seus usuários.